Tuesday, August 28, 2007

A mulher que criou as estrelas

Moacyr Scliar é membro da Academia Brasileira de Letras, ganhou duas vezes o Jabuti e tem livros traduzidos para muitos idiomas - incluindo Tcheco, Russo e Hebraico


A princípio aquilo me desagradava profundamente. De vez em quando estava lá, parecia sem contexto nenhum – até mesmo exagerado. Mas as páginas se seguiram como seguiram aqueles longos anos de patriarcado do povo de Israel, de juizado e de reinado e acabaram chegando a Salomão, segundo filho de Davi e Betsabá, o filho que conseguiu se salvar da ira divina por conta do adultério dos pais – só para lembrar, Davi mandou o marido de Betsabá morrer na guerra para traçar a esposa. E é exatamente durante os anos de Salomão que o livro do gaúcho Moacyr Scliar toma parte: A Mulher que Escreveu a Bíblia estava lá no palácio, trancafiada num quarto, escrevendo, escrevendo. Puta de raiva mais por não ter trepado com o rei, de quem era esposa, do que de estar escrevendo sob a supervisão de um conjunto de anciãos.

Pra que não fique nada sem ser esclarecido, vamos começar por onde deve ser: um ex-professor de História, agora terapeuta de vidas passadas, recebe uma paciente e acaba apaixonando-se por ela. A vida da moça é pautada por grande frustração amorosa até então – não se sabe se porque é feia ou sem sorte, coitada. O fato é que nas sessões ela descobre uma trama incrível que viveu há muito tempo, ainda em outra encarnação, quando era a mais feia esposa de Salomão, uma de suas mil mulheres – entre esposas e concubinas. E o que teremos acesso é esse relato fantástico de como ela, uma figura feminina numa época de homens, conseguiu escrever a Bíblia.

Estamos diante de um prosador experiente, 70 anos e 70 livros publicados, ganhou vários Jabutis e o Booker Prize por tabela e construiu nesse romance um texto ágil, forte, furiosamente irônico, com uma linguagem que ao mesmo tempo reproduz suavemente o Cântico dos Cânticos (tua boca cubra-me de beijos) e a mais boba gíria: traçar, puta, trepar e coitada nos parágrafos acima não foram palavras postas de graça. E era esse tratar com a língua que eu rejeitei no começo da leitura. Estava esperando um romance-histórico, dados maquiados no meio do texto, costumes daquela época disfarçados de trama pra eu acreditar que estava de verdade na corte de Salomão de tantos e tantos anos antes de Cristo. Scliar me pregou uma peça, e uma peça das boas: a história que ele tem a nos contar é muito mais forte que isso. A matéria dele não é a época, são as pessoas, é o rei, o pastorzinho, a rainha de Sabá, é a nossa escritora, como diz o crítico Harold Bloom numa citação de The Book of J, uma mulher “culta e irônica, destacada figura da elite do rei Salomão [...]; uma mulher, que escreveu para os seus contemporâneos como mulher”. E era doida por sexo – como todo mundo.

O romance é movido pelo orgasmo: ao deixar a pedra ovóide de lado e tentar encontrar um homem de verdade ainda quando morava na aldeia, a nossa escriba se apaixona pelo pastorzinho que, entre uma cabra e outra, tem um caso sua irmã; nossa personagem vai para Corte e acaba caindo de amores pelo rei, fazendo de tudo – até rebelião no harém – para tentar ir pra cama com ele já que com tantas esposas seu dia nunca chegaria; na primeira versão do gêneses que ela escreve, Adão e Eva faziam sexo rolando na grama, em tudo quanto era canto, em todas as posições, o que seria muito mais interessante, de maneira que “o encontro dos dois era, portanto, uma espécie de Big-Bang do sexo, muito Big e muito Bang”; e Deus não os expulsaria do Paraíso, pelo contrário, dava era muita força, porque agora eles conheciam o amor e iam poder viver a vida como ela é, cheia de som e de fúria – como no livro do Faulkner. É exatamente pra fazer sexo que ela escreve a Bíblia, acreditando que o rei irá recompensá-la quando o trabalho estiver terminado.

Enfim, o livro olha para a intrínseca relação entre a existência e o amor, e está analisando isso através do ponto de vista dessa mulher do século X antes de Cristo, uma criatura ao mesmo tempo questionadora dos valores da época e perfeitamente imersa naquela sociedade. A escriba não quer ser livre do rei como o pastorzinho pensa enquanto os dois conversam na cena que se desenrola no quarto dela, perto do fim do livro; ela não propõe rebelião no harém para que a mulher seja considerada um ser e não uma propriedade; antes, a feia, como ela se denomina muitas vezes, luta por sua felicidade, que não está distante, mas muito perto, o que acaba tornando tudo docemente angustiante. Assim, não haverá vida, nem pra personagem, pra mim ou pra você, leitor, enquanto não matarmos o nosso leão da Neméia; e, como se ele ressurgisse igual outro animal do imaginário grego, teremos de matá-lo de novo e de novo, durante todos os dias, até que então, sem mais podermos, seremos devorados por ele. Mas se ela é devorada, só a atenta leitura do livro dirá – ou não.

É interessante notar também como o autor consegue lidar com o texto bíblico, suas passagens, suas histórias. Há sempre um questionamento desse Velho Testamento; não tentando ser uma indagação sociológica, mas uma perspectiva leve, com humor, sobre o que realmente é essa história milenar e canônica, cheia de incongruências, repressões e preconceitos. Não é um livro bíblico, é bom dizer – embora Deus e os personagens do povo eleito estejam presentes. E a nossa protagonista também nem é Sherazade – embora seja uma figura feminina, detentora de um invejável repertório ficcional. Scliar cria um universo muito próprio, com opiniões às vezes bastante ferinas sobre as pessoas e situações.

Publicado em 1999, o romance conta a história de uma das esposas do rei Salomão num suntuoso palácio dez séculos antes de Cristo


A Mulher que Escreveu a Bíblia é a divertida narrativa de uma mulher que criou o céu, a terra, os mares, o homem, a mulher, colocou-os no Paraíso e deu-lhes filhos e netos, povoou o mundo inteiro e era apaixonadíssima pelo rei Salomão. Que mais? Ah, sim, ela era feia.

Friday, August 24, 2007

Uma carta de Moravia

“Eu bebo a Vida, a Vida, a longos tragos

Como um divino vinho de Falerno”

Florbela Espanca


Alberto Moravia, durante a infância, por conta da tuberculose óssea, lia quase um livro por dia


Adriana e seus belos olhos e sua bela boca e suas belas pernas percorrem uma trajetória em que as paredes de seu quarto, os lençóis de sua cama talvez sejam testemunhas de uma vida, mais do que baseada na luxúria de sua profissão, nos sonhos simples de sua mocidade. É assim o romance do grande Moravia, que criou a doce e apaixonante Adriana, um tipo aparentemente comum de uma Roma dos idos do fascismo, em que a polícia política concentrava esforços contra os que atentavam contra o regime e, nas delegacias, se entrava e saía com aquele cumprimento característico – como é bem representado quando Adriana procura o amado Mino que está preso, mas isso é conversa para daqui a alguns parágrafos. Por enquanto, ainda estamos no clima quase idílico do início do romance, onde Adriana é apenas uma jovem bela e sonha em casar-se e ter filhos. O oposto do que sua mãe pensa para seu futuro. Logo isso será um embate vigoroso entre as duas.

A mãe levava Adriana para posar para pintores e a vendia como quem vende animal, tirando-lhe a roupa e apresentando suas qualidades físicas. Isso formou uma faceta luxuriosa de sua personalidade que, ainda naquele tempo, sonhava em jantar sopa com filhos e marido ao redor da mesa, felizes, como viu certa vez numa casinha humilde da cidade num de seus passeios com a mãe. Mas nas palavras da matriarca, intransigentes enquanto ainda tinha o domínio sobre a filha, a beleza de Adriana poderia levá-la a conseguir muito dinheiro, um marido rico, bem nascido, de família de posses. E tudo pareceu ser destruído no momento em que a moça anunciou, ao chegar à noite, que estava noiva. E noiva de um chofer, Gino, motorista de uma madame riquíssima, moradora de uma vila, que é como são chamados certos palacetes na Itália.

Embalada pelas promessas de casamento, Adriana entrega-se a Gino como acreditava não poder entregar-se a mais ninguém. A convicção durou até o dia em que surge a figura do importantíssimo Stefano Astarita, um figurão da polícia fascista, que está morto de amores por ela. Contra sua vontade, Adriana é levada para um passeio e é chantageada por Astarita. Para não perder o noivo, ela vê-se obrigada a fazer sexo com o inescrupuloso sujeito; e para afastá-la do futuro marido, a quem Adriana cultivava intensa fidelidade, Astarita faz questão de descobrir a vida pregressa de Gino, que tem uma mulher e uma filha – e foi exatamente aí o início da derrocada de nossa personagem. Em 1947, as cenas escandalizaram a Igreja e o Governo, e o romance acabou proibido no país; entrou no Index Librorum Prohibitorum do Santo Ofício e católico nenhum poderia sequer folhear as páginas escritas por aquele italiano de ascendência judaico-cristã. La Romana, o título original do livro, traduzido rigorosamente como A Romana para o português por Marina Colassanti, só não foi queimado porque Moravia não nasceu no século XVI senão, talvez ele próprio tivesse sido, junto com seus livros.


La Romana, publicado pela primeira vez em 1947, e proibido na Itália fascista


Adriana é mais do que uma sensibilíssima análise de uma sociedade, calcada no dinheiro e no sexo. Na verdade, a personagem é o exemplar de uma espécime em franca extinção: a sua profundidade está escondida atrás daquela couraça simples, de seus modos pouco educados e de sua leitura deficiente; cozida em linhas e agulhas literárias de mestre, ela é um personagem do qual não se esquece. Ninguém esquece uma mulher como Isadora. Ninguém esquece também uma mulher como Adriana, viva, intensa, que passa a ter uma relação quase lacônica com a mãe, recebendo os homens em seu quarto de móveis novos, comprados para o casamento fracassado com Gino. Ainda assim, ela resiste, com o prazer que o dinheiro lhe proporciona e com o excesso de afeto que lhe transborda. Ela começou a dar-se por dinheiro devido ao seu destino sofrido, de seu caso amoroso infrutífero, mas não resistiu nele pelo mesmo motivo. É que nossa personagem sempre foi voluptuosa, a síntese de uma sociedade, massacrada pelas agruras da desigualdade e movida por aquele binômio, capital-sexo, cada vez mais forte.

O livro em primeira pessoa, contando as aventuras da Romana, instituiu uma visão de literatura, uma assinatura pessoal de Alberto Moravia, que nasceu Alberto Pincherle e morreu há exatos 17 anos. Imprimiu no texto uma maneira particular de criação de personagens. Os pensamentos de nossa moça pobre e suburbana não precisam se esquivar de bom vocabulário, de correção gramatical. Estão centrados, antes disso, num modo de se organizar muito compatível com a postura bastante singela, em alguns momentos leve, diante dos fatos que Adriana adota, e isso produz nas várias páginas dessa história a sensação de que estamos descobrindo a figura de um ser humano tão complexo e tão simples quanto qualquer um de nós, ao mesmo tempo, pode ser.


Moravia e a esposa, Elsa Morante, também escritora


E é aqui que Moravia mostra seu apurado senso de observação. Não adianta o leitor, afagado com certas literatices recorrentes e convenientes, tentar procurá-las nesse volume. Não há adjetivos em vão, suas comparações e metáforas adquirem um valor poético muito forte por serem intensa e principalmente verdadeiras e espontâneas. Sobre os personagens, Adriana emite opiniões e considerações porque fala distanciada, pelo tempo que passou, pelo afeto que já deixou de existir, em alguns casos nunca existiu ou mesmo ainda existe. Ela narra como os personagens de sua vida acabaram envolvidos através das teias da mesma trama: o amor de Adriana por Gino e depois por Mino, o estudante revolucionário anti-fascista; a falta de sentimentos em relação a Astarita, que sempre pareceu perturbado perto dela; o inebriante Sonzogno e sua violência alucinante. São marcas de um tecido urdido com as mágicas da boa literatura que fizeram Adriana amar desesperadamente o estudante a ponto de usar-se de Astarita para tentar libertá-lo da prisão, uma ação arriscadíssima já que Giacomo, o nome verdadeiro de Mino, era de uma organização que pregava o fim do Regime.

A Roma suja e fria da capa das edições da Editora Abril, na série Grandes Sucessos, que foi ao qual eu tive acesso, contrasta com a capacidade que Adriana tem de continuar a viver apesar de tudo – o final trágico pode ser até um elemento previsível, mas não estraga o romance. Este livro de Moravia, que está completando 60 anos de sua publicação, é uma carta aberta: rendendo loas à vida, às delícias e aos sofrimentos de ser quem se é, enfim, à incrível, insuperável e eterna esperança que é viver.

Thursday, August 16, 2007

Caça leitura na internet

Bem, vou inaugurar, agorinha mesmo uma sessão em que vamos colar alguns links interessantes deste universo repleto de informação desencontrada que é a nossa internet.

Liberal Libertário Libertino

Pra começar, um blog sobre literatura do tal de Alexandre Castro. Com ele aprendi uma série de coisas, conheci bons livros e “dialoguei” com a visão crítica que ele apresenta nos comentários que faz. Lá também fotos de pés femininos (?). O cara também disponibiliza um romance dele para download (e os links para comprar os outros livros hehehe) no site. No mesmo site a série “prisões” é muito interessante, assim como outros artigos... destaque para este aqui, pelo qual conheci José J. Veiga.

Tábua de Marés e Mudança de Ventos

O outro blog na verdade é dois: Márcia Maia, uma médica de nome sonoro e que se bifurca, na minha opinião muito bem, em poeta e prosadora (ia dizer contista). Já tem também livros lançados e compráveis, acredito que não iria se arrepender que m o fizesse... Os nomes dos blogs já são muito bons.

Friday, August 10, 2007

Minha leitura: ''Maysa, Só, numa multidão de amores''

Tudo llegó
Com fuerzas
Braviamente,
Rompiendo,
Lhegando
Y se hizo la calma total

El verde quedó verde,
La chica quedo renga,
La vieja seguia vieja
Pero la calma... total

No hubo uma sola voz
Qué coraje tuviera de gritar,
De deshacerse
Y perguntar

Las piedras a los pies ya no herian
La noche,
El dia,
Igual.

Quien há muerto?
El mundo, o Yo?

Maysa foi antes de tudo uma voz. Ninguém pôde calar dentro dela essa chama que não passou. Era uma voz que trazia à tona a si mesma, por isso capaz de trazer à tona quem quer que a ouvisse. Não precisou explicar quando ou como ela veio. Seja, cantando, escrevendo, compondo, atuando ou o que quer que seja, ela só disse o que pensava, só fez o que gostava e aquilo em que acreditava.

A conseqüência disto é que é principalmente pela sua própria voz que tomamos conhecimento de sua história. Se suas músicas e entrevistas já nos diziam muito de sua pessoa, através do livro ‘’Maysa – Só, numa multidão de amores’’ é em grande parte pelas suas próprias anotações, diários e até mesmo de trechos de um esboço de biografia que tomamos conhecimento de sua vida. O livro, escrito pelo jornalista cearense Lira Neto, cumpre inteiramente seu papel como biografia ao deixar transparecer essa personagem e ainda enriquecê-la com os depoimentos de amigos e pessoas que com ela conviveram.

O jornalista, que teve acesso à imenso material pessoal da cantora cedido por seu único filho, Jayme Monjardim, acrescentou à essa voz principal a confrontação dos fatos e acontecimentos que não poderiam caber em um só indivíduo. Com isso se estabelece o rigor jornalístico e um olhar menos indulgente para com a biografada, o que é essencial para que não se caia no melodrama. Especialmente frente à uma personagem tão afoita aos extremos como esta.

Porém, sem menosprezar o autor, o melhor do livro fica realmente por conta das passagens em que temos acesso aos escritos da própria Maysa falando sobre si mesma, afinal, não há depoimento mais interessante do que o próprio biografado. O poema acima, por exemplo, parece traduzir muito bem sua intensa trajetória de vida. O texto, que fala de uma intensidade impressionante na força com que chega, que é a mesma com que se vai, expressa bem o ciclo de altos e baixos pelos quais a cantora passou. As próprias circunstâncias em que escreveu esse poema demonstram um de seus baixos e ao mesmo tempo um ponto de virada: o escreveu em uma de suas muitas passagens por clínicas de reabilitação, no caso, em Buenos Aires. Foi a maneira que encontrou de fugir por algum tempo da imprensa brasileira, que noticiava cada novo escândalo seu.

E o livro nos conduz de maneira bastante fluida e articulada nesse percurso pedregoso. Filha de uma família rica, Maysa Monjardim casou com um herdeiro mais rico ainda, André Matarazzo. Para via de referência, a revista Times chegou a comparar a riqueza do clã paulistano à da família Rockfeller nos Estados Unidos. Imagine-se o escândalo causado por um moça de tão ''boa'' família, então com apenas 22 anos, se lançando na carreira de cantora, na época veiculada à qualquer coisa menos à respeitabilidade exigida de uma senhora como tal.

O casamento acabou não sobrevivendo, mas a carreira, desde o início, foi de vento em poupa. Logo Maysa tornou-se o símbolo da música de fossa, gênero que dominava as paradas da década de cinqüenta. Este se tratava na verdade uma espécie de adaptação brasileira dos boleros mexicanos que faziam sucesso em todo o mundo. Ganharam aqui, entretanto, uma pitada de samba e viraram a música de fossa.

A mistura era meio inesperada, mas nem tanto; o samba, no caso, é mais especificamente o samba-canção, gênero mais lento desse ritmo e que é acompanhado normalmente de letras bastante melancólicas. Vide um Noel Rosa, por exemplo.Já o bolero mexicano tem como principal expoente o mais que conhecido ‘’Bésame Mucho’’, gravado por 9 entre dez cantores românticos, não importa que geração. Outra coisa interessante do livro é justamente inserir Maysa no contexto histórica da música brasileira, o que acaba fazendo com que o leitor, pelo menos um leigo como eu, entenda melhor o desenvolvimento da nossa música desde a década de 50 até meados de 70.

Finalmente, para identificar o que seria a canção de fossa, caso seja desconhecida do leitor, basta lembrar do grande sucesso do primeiro lp da ainda então senhora Matarazzo:

‘’Meu mundo caiu
E me fez ficar assim
Você conseguiu
E agora diz que tem pena de mim
Não sei se me explico bem, eu nada pedi
Nem a você nem a ninguém
Não fui eu que caí
Sei que você me entendeu
Sei também que não vai se importar
Se meu mundo caiu
Eu que aprenda a levantar’’

Entretanto, apesar de conhecida preponderantemente por suas músicas de dor-de-cotovelo e pelo alcoolismo, a cantora nunca entoou sua tristeza de maneira leviana, como muito se vê hoje no triste cenário de nossa música mainstream. Maysa enfrentava a tristeza para viver a vida, e não para fugir dela. Cantou seus dramas por acreditar na sua verdade, talvez ainda por saber que devia viver a vida em sua intensidade, tanto feliz quanto triste. Inspirado por essa sua faceta, o poeta, profeta e músico Jorge Mautner chegou escrever um livro no qual Maysa figura como uma das personagens principais, ‘’Deus da chuva e da morte’’, ganhador do prêmio Jabuti em 1963. O encontro entre os dois está no livro e é deveras antológico.

Seria errôneo e redutor, porém, classifica-la unicamente como uma cantora de fossa. Ela não se limitou somente à ela, flertando com diversos gêneros musicais. Prova disso são suas inusitadas versões para Light my fire, do The Doors, e Se você pensa, de Roberto Carlos, em seu disco Canecão apresenta Maysa. Com o amadurecimento artístico, Maysa foi flertando aos poucos com outros gêneros musicais. Ela mesma alardeava, por exemplo, que fora a primeira a levar João Gilberto para São Paulo, onde o levou para tocar em seu programa de tv. Foi a primeira vez que ela largou a orquestra pelo acompanhamento básico do violão. E isso aconteceu pouco tempo antes dele lançar ‘’Chega de saudade’’, marco do início da onda da Bossa Nova no país. Para completar a transição, em 1961 pulou de vez nessa maré e lançou o disco O Barquinho, cujo título faz menção à canção homônima de Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli, outro marco histórico do início da bossa.




Depois desse período a cantora viveu muitos outros altos e baixos, tendo morrido em 1977, aos 40 anos, vítima de um acidente de carro na ponte Rio-Niterói. Morreu entretanto na fase mais calma de sua vida e carreira. Nessa época, já tinha trocado a vida boêmia das grandes cidades por sua pacata casa em Maricá, se dedicando aos seus cachorros e à pintura. Estava solteira e aparentemente despreocupada com isso. O título da biografia, porém, parece fazer jus à personagem: Maysa, apesar de seus milhões de amantes esteve sempre um pouco só, como todo nós. A diferença é que essa solidão ela cantava. Deixou saudade, mas eu gosto dessa saudade, ela é você.

Ao ler Só, numa multidão de amores, infelizmente, tanto quanto a perplexidade diante de uma personagem tão magnífica da nossa música fica a triste sensação de que o Brasil definitivamente é um país sem memória, talvez sem uma saudável saudade. Para o senso comum, ou seja, pelos especiais e menções da rede Globo, aparentemente a única coisa interessante produzida nos últimos cinqüenta anos se restringe aos nomes de Elis Regina, Chico Buarque, Tom Jobim e o quarteto Gal, Gil, Bethânia e Caetano. O livro de Lira Neto, através de seu atento trabalho de pesquisa aliado à farta documentação de acervo pessoal da cantora, acaba sendo um jorro de luz no obscuro cenário de nossa memória musical.

Sunday, August 05, 2007

Duas mamães

A história que motiva este post está neste interessante artigo: http://findarticles.com/p/articles/mi_qa3861/is_199811/ai_n8823379

Vou resumi-la. Nos Estados Unidos, a biblioteca municipal da cidade de Wichita Falls comprou exemplares para sua seção infantil dos livros Heather has two mummies, a história de uma menina, a Heather, que, enfim, tem duas mães (“... ensinando que o importante em uma família é que todos nela amam uns aos outros”), e Daddy´s rommate, de um menino que, depois do divórcio de seus pais, descreve a relação do papai com um “colega”. Vale dizer, é uma iniciativa na educação infantil de mostrar (“dar visibilidade”) a uma nova forma de entidade familiar, baseada no casamento gay.

Heather tem duas mamães.

Vamos guardar pra depois as considerações sobre se foi certo o município ter comprado ou não estes livros.

Primeiro é interessante falar sobre o caso de que trata o artigo do link que inicia este post. O pastor Jefress, da Igreja Batista daquela cidade, iniciou uma campanha de boicote aos livros. Ele pegou da biblioteca as cópias destes dois livros e se recusou a devolver, optando por pagar o dinheiro equivalente. Ou seja, ele, a bem da verdade, furtou, e foi seguido por alguns outros (ainda tendo como alvo os mesmos livros), em outros lugares dos EUA. Acabou que o fulano fez tanto barulho que o Council da cidade (que, acredito, deve ser algo como uma Câmara Legislativa) chegou a seguinte absurda solução (isto em 1999):

Se 300 pessoas assinarem um abaixo-assinado pedindo para retirar um livro da estante infantil da biblioteca, isso deve ser acatado pelo bibliotecário.

Dos vários problemas disso, um salta aos olhos: Wichita Falls já tinha na época uns 100.000 habitantes. Além do que, imaginem numa pluralidade de visões, marginais ou majoritárias, quantos grupinhos de 300 não poderiam sair por aí tirando isso e aquilo das prateleiras sem qualquer fundamento, ou com a falta de fundamento que é dizer simplesmente “não concordo”. Estariam armados estes 300 guardas do pensamento esperando outras decisões favoráveis que lhes ampliassem os poderes de controle sobre qualquer conteúdo a ser veiculado por qualquer meio. Ainda mais: é uma idéia distorcida de democracia essa que diz que por serem 300, 3000 ou 30000000 os reclamantes se pode, pelo poder “democrático” do número de gente, dizer legitimamente o que é ou não adequado de se ver e ouvir. A democracia não pode negar-se: não se pode decidir democraticamente contra a democracia.

Daddy´s roommate: "Minha mãe e meu pai se divorciaram ano passado."

A luta entre ideologias que envolve a publicação, distribuição e a compra de livros, por particulares e pelo Estado (especialmente quando usado no sistema público de educação) nos deixa uma série de perguntas, que devem também ser consideradas nesse caso dos livros “gays”.

Quando a biblioteca em questão comprou tais livros, ela estava adotando uma posição política que excluía outros segmentos da opinião pública (a saber, anti-homossexualismo)? Pode ter o Estado um mínimo de neutralidade quando se vê perante a diversidade de opiniões? Quando ele pretende neutralidade, está realmente a realizando de modo honesto? Ou deve ele desistir de uma pretensa neutralidade, adotando uma visão, pois o jogo democrático é esse? Existem livros indesejáveis? Se existem, quem tem legitimidade para dizer quais são, dentre uma infinidade de títulos? A maioria, os mais sensatos?

Capas dos livros: prometem ser livro infantil como quaisquer outros.

Sobre a história que contei, em 2000 a resolução dos 300 foi revogada por uma corte federal americana.

Continua em outro post.

Friday, August 03, 2007

Poesia e Música


Como vocês sabem, esse mês o tema nas rodas do Por Mais Leitura são as relações entre música e literatura. Tudo bem até aí. Mas a questão que fica é: como podemos explorar esse mote, sem pender demasiadamente para um lado ou outro?

Bom, a resposta não é tão fácil, nem tão óbvia, mas faço aqui algumas considerações as quais espero que contribuam um pouco para as nossas discussões.

Há muito tempo a equipe do Por Mais Leitura vem pensando em como abordar esse assunto, visto que ele muito nos interessa, e, nos parece, é também bastante atrativo para as pessoas em geral. Não é a toa que meu professor de estética dizia que a música é a mais invasiva e agregadora das artes. Isso porque a música rompe barreiras e se espalha pelo espaço, física e metaforicamente, atraindo e chamando as pessoas. E essa é a mesma intenção das nossas Rodas.

Bom, mas então, o que entra na roda a partir desse tema? Acho que a primeiro questão com que iremos nos deparar é com aquela velha polêmica: letra de música é poema?.

Entre as várias e acaloradas discussões sobre o assunto, sou partidário da resposta que diz sim e não. Digamos simplificadamente que uma letra pode ser um poema, caso seu potencial poético seja interessante por si só. Não é o caso de ser algo bonitinho ou dizer algo interessante, mas estar de estar em pé de igualdade frente à qualquer boa poema. A maior parte das boas letras de música, entretanto, não teriam a mesma força e impacto se não fossem seus belos acordes.

De qualquer maneira, não podemos restringir as obras que caberiam nos nossos encontros somente àquelas que corresponderiam à ‘’poemas em forma de música’’, ou seja, àquelas em que a adição ou não de uma melodia não é essencial. Isso porque há uma relação intrínseca entre a poesia e a música, não podendo ser possível separa-las de todo. E a Poesia, em sua essência, pode se manifestar em diversas formas que não necessariamente poemas.

Em suas origens, a poesia funcionou como a primeira forma de registrar mitos e acontecimentos. As histórias, enquadradas em versos, metrificadas e acrescidas de rimas, se fixavam mais facilmente na memória das pessoas, que através de cantos lhes repassavam para as demais.

Diz-se que foi daí que surgiu a música, mas como foi também a partir de então que a palavra teve seu primeiro registro, fica impossível dissociar a palavra e a palavra cantada.

Partindo desses princípios, acredito que nos nossos encontros poderão ser compartilhadas tanto letras, de preferência acompanhadas de suas melodias, quanto poemas que explorem a fonética das palavras, seu ritmo, etc, ou ainda textos em prosa que tenham como mote a música, ou se relacionem de alguma forma com ela. O Guilherme, por exemplo, prometeu levar um conto que fez baseado em uma música, How soon is now, dos Smiths. Já a Lara tem, na minha opinião, um de seus melhores contos, Clarice, feito a partir da música homônima de Caetano Veloso.

Por isso, não se acanhem. Levem seus textos, dessa vez, porque não, acompanhados de voz, violão, ou cd, que seja. Afinal teremos lá um cd player e a disposição de sempre para compartilhar.


O quê: Roda de Leitura Por Mais Leitura
Tena: Literatura e Música
Onde: Saguão da Biblioteca Leonilson(dentro do Museu de Arte Contemporânea do Dragão do Mar)
Quando: dias 04 e 18 de Agosto.
Horário: 15h-18
Entra franca.

Para saber mais:

Artigo ‘’Letra de Música é Poesia?’’:
http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=2503

História da música:
http://almanaque.folha.uol.com.br/musicaoquee.htm

História da poesia:
http://www.arnaldoantunes.com.br/sec_textos_list.php?page=2&id=27