Friday, February 22, 2008

Minha Leitura: Uma vida revelada











A delicada capa de Uma Vida em Segredo da Coleção Prestígio, Edições de Ouro.


Uma garota simples, nascida e criada em sua fazenda, tem que ir para a cidade depois que seu pai morre. Chegando lá, vai morar com a família de uma prima afastada, tentando se adaptar à vida e ao mundo que a ela se impõe, sem jamais obter sucesso.

É assim, sem nenhum esforço, que podemos resumir a história de Biela, personagem que dá força e vida à novela Uma vida em segredo, de 1964, de autoria de Autran Dourado. Um enredo simples para uma personagem também bastante simples: os fatos além dos já citados são muito poucos. Temos sua tentativa de superar sua impossibilidade, vestindo os panos encomendados pela prima da prima, tentando aprender a comer à mesa, a conversar as conversas da sala de estar. Chega a copiar tão bem os gestos que se lhe apresentam que arranja um noivo, mais por confusão e conveniência do que por amor. Sua falta de habilidade, entretanto, não lhe permite ir muito longe, como demonstra a maneira como anda quando usa os seus novos vestidos, os braços sempre abertos e meio erguidos com medo de amarrotá-los. Andava parecendo um espantalho, como define o primo mais novo por pirraça.

O acaso, porém, faz aqui sua parte e por um golpe de azar ou de sorte o noivo acaba fugindo e o noivado desfeito, o que é a gota d´água para que Biela desista de tentar fazer parte da nova família, de se comportar, de ser uma senhorita.

Ela decide, então, começar a imitar a si mesma, juntando tudo aquilo que em sua nova vida remete ao seu pedaço de mundo perdido lá na ‘’fazenda do fundão’’, numa tentativa de reconstruir o seu cotidiano. Para isso do seu quarto de visitas, com porta para a sala de estar, onde foi alojada pela família, e muda-se para o quartinho dos fundos, juntos com os criados, cujas conversas despretensiosas lhe lembra as do povo simples da roça. E é sobre lá, sobretudo, que eles assuntam, todos de certa forma desgarrados de sua origem simples. Vive, a partir de então, se ocupando das atividades domésticas, trocando as visitas às cumadres da prima pelas empregadas das mesmas.

E assim segue a vida até o fim: se de início foi motivo de certo escândalo, no final da vida já não era quase notada. E não se avexem de que eu tenha contato praticamente toda a história até aqui. Como talvez já tenham percebido não é essa pequena trama, quase tola, que vai realmente importar em Uma vida em segredo.

Essa seria, afinal, uma história pífia e sem sal, se Biela, através de sua pequena luta por sua reconstrução, não trouxesse forte na lembrança ‘’o riachinho correndo, o chuá-pá do monjolo, o som da água enchendo o cocho, o silêncio, o ranger do cepo na tranqueta, o chuá da água, o barulho chocho da mão caindo no pilão quando se pilava o arroz, mais duro quando se esfolava milho’’. Através da narração de Autran, que desentranha toda essa riqueza de lembranças de dentro de Biela, é que descobrimos quem realmente habita o corpo desengonçado e chucro de nossa protagonista, o que passa desapercebido por todos os outros habitantes da história, razão evidente do título do livro.

Sua relação com Constança, a prima que lhe acolhe em sua casa, chega a ser, inicialmente,seu porto seguro nesse novo mundo, evocando-lhe até mesmo a imagem de uma mãe que era só lembrança no fundo de uma rede, lhe beijando a testa. Ou então às fábulas de princesa que eram contadas a ela pela empregada negra, quase ama de leite orfã de mãe e de pai ausente. Sentindo-se na obrigação de receber a parente diante dessa situação difícil, Constança tenta acolhê-la e inseri-la na vida pequena burguesa da cidade de interior, o que não dura muito tempo, pois esta logo desiste frente à estranhisse da prima, chegando à ter certo repudio pela mesma.

Prima Constança e Biela, em cena do filme Uma Vida em Segredo(2002), de Suzana Amaral.

Mais próxima e recíproca se dá a relação com Mazília, filha de Constança, que ao tocar o piano apresenta à prima talvez a única coisa daquele mundo que realmente lhe toca, a música. O casamento e a mudança para outra cidade, entretanto, acabam fazendo com que essa amizade se perca no tempo, virando uma lembrança quase tão longe como os ruídos que vinham do fundão.

A maneira com que Biela se relaciona não só com os outros, aliás, mas com todas as coisas desconhecidas ao seu redor lembra muito a maneira com que Macabéa, da novela A Hora da Estrela, de Clarice Lispector, sentia as suas pequenas descobertas e sensações. Se esta ficava tão maravilhada ao ver pregos na vitrine que urina no próprio vestido, Biela, moça de seus dezoito anos, chora pela primeira vez na vida depois de ver Mazília tocar ao piano uma valsa. Até então, não sabia sequer o que era aquele objeto grande, escuro, no meio da sala.

São grandes suas semelhanças com a personagem de Clarice, afinal, as duas são personagens marcadas profundamente pela impossibilidade, perdidas em um mundo com o qual não conseguem se relacionar. Além disso, são ao mesmo tempo ingênuas, primitivas e dóceis, capazes dos atos mais desconcertantes que.

Não é de se estranhar, portanto, que a cineasta Suzana Amaral tenha se dedicado exclusivamente a esses dois personagens em sua curta filmografia, justamente adaptações dos dois livros aqui citados. Apesar das semelhanças, entretanto, elas guardam também suas particularidades, talvez mais pelo modo como são contadas do que por questões de personalidade.

Se Macabéa não sabe gritar, esse não é o caso de Biela: ela é calada, quieta, mas não muda. Dela não se ouviria quase nada a não ser que se soubesse a maneira como percebia as coisas, nas sensações que a prima tocando lhe causavam, das sutilezas de suas mudanças. Deixar de usar as roupas que Constança lhe deu, ir se calando aos pouquinhos, se ocupando das tarefas da casa, até se transferir de vez pro quarto dos fundos. Permitindo-nos esticar o ouvido pra esse muxoxo que é a sua vida é que Autran Dourado nos permite ouvi-la, sem que ela precise gritar.



Se Macabéa se emociona com pregos na vitrine, Biela, diminutivo de Gabriela, é também o nome de uma importante peça nas engranagens de carros. Segundo o Houaiss:
Substantivo feminino Rubrica: engenharia mecânica. a - haste de aço forjado ou fundido que, articulada em suas extremidades a duas peças móveis, transmite a uma o movimento da outra, modificando-o ou não
b - nos automóveis, caminhões, aviões etc., peça de ligação entre o êmbolo e o eixo de manivelas, a qual transforma o movimento alterno retilíneo do primeiro no movimento circular do segundo


Essa silenciosa luta pela apropriação de sua vida, por sua vez, me faz lembrar de outro célebre personagem da literatura, do qual ela ao mesmo tempo se afasta e se aproxima. Trata-se do Gregor de A Metamorfose, de Kafka, homem que um belo dia acorda transformado em uma barata. Assim como no seu caso, somente nós e o narrador partilhamos de sua saga íntima de adaptação à uma realidade nova com a qual não pode lidar, permanecendo oculta para o resto do mundo até mesmo que possa sentir esse mundo, como acontece com Biela.

Mesmo que no caso de Gregor a mudança seja dele, ao contrário de Biela, que se vê deslocada de mundo, os efeitos são razoavelmente os mesmos: afastar-se dos outros, fingir quase não existir. A diferença é que isso em Biela é reflexo de uma luta, um rompimento com os outros para se ligar àquilo que realmente lhe importava, mesmo que fosse a lembrança de passado evocada pela senzala de uma casa-grande. Não é por acaso, provavelmente, que ambos tenham uma morte tão triste, mas tão contrastante. Enquanto Gregor morre sozinho, provavelmente de fome e abandono, depois de desistir de viver trancafiado no quarto pela própria família, Biela é resgatada pela família e levada ao hospital. Chegando lá, toma sua última e verdadeira medida: não quer morrer no quarto, sozinha. Prefere morrer na ala dos indigentes, em companhia.

Se é esse o seu último passo na pequena trajetória que traça na sua nova vida, ele não é o único, e vários são os pequenos indícios que Autran nos dá durante a novela de que Biela é, faz e sente muito mais do que aparenta. Toda essa a sua reserva, afinal, não se trata de uma renúncia à vida, à sua fortuna, da qual nunca foi atrás desde a morte do pai, ou qualquer cosia do tipo, e sim uma volta àquilo que ela tinha perdido, ao sair do fundão, há tanto tempo: uma vida simples, isso sim. Uma vida em segredo.

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