Tuesday, August 28, 2007

A mulher que criou as estrelas

Moacyr Scliar é membro da Academia Brasileira de Letras, ganhou duas vezes o Jabuti e tem livros traduzidos para muitos idiomas - incluindo Tcheco, Russo e Hebraico


A princípio aquilo me desagradava profundamente. De vez em quando estava lá, parecia sem contexto nenhum – até mesmo exagerado. Mas as páginas se seguiram como seguiram aqueles longos anos de patriarcado do povo de Israel, de juizado e de reinado e acabaram chegando a Salomão, segundo filho de Davi e Betsabá, o filho que conseguiu se salvar da ira divina por conta do adultério dos pais – só para lembrar, Davi mandou o marido de Betsabá morrer na guerra para traçar a esposa. E é exatamente durante os anos de Salomão que o livro do gaúcho Moacyr Scliar toma parte: A Mulher que Escreveu a Bíblia estava lá no palácio, trancafiada num quarto, escrevendo, escrevendo. Puta de raiva mais por não ter trepado com o rei, de quem era esposa, do que de estar escrevendo sob a supervisão de um conjunto de anciãos.

Pra que não fique nada sem ser esclarecido, vamos começar por onde deve ser: um ex-professor de História, agora terapeuta de vidas passadas, recebe uma paciente e acaba apaixonando-se por ela. A vida da moça é pautada por grande frustração amorosa até então – não se sabe se porque é feia ou sem sorte, coitada. O fato é que nas sessões ela descobre uma trama incrível que viveu há muito tempo, ainda em outra encarnação, quando era a mais feia esposa de Salomão, uma de suas mil mulheres – entre esposas e concubinas. E o que teremos acesso é esse relato fantástico de como ela, uma figura feminina numa época de homens, conseguiu escrever a Bíblia.

Estamos diante de um prosador experiente, 70 anos e 70 livros publicados, ganhou vários Jabutis e o Booker Prize por tabela e construiu nesse romance um texto ágil, forte, furiosamente irônico, com uma linguagem que ao mesmo tempo reproduz suavemente o Cântico dos Cânticos (tua boca cubra-me de beijos) e a mais boba gíria: traçar, puta, trepar e coitada nos parágrafos acima não foram palavras postas de graça. E era esse tratar com a língua que eu rejeitei no começo da leitura. Estava esperando um romance-histórico, dados maquiados no meio do texto, costumes daquela época disfarçados de trama pra eu acreditar que estava de verdade na corte de Salomão de tantos e tantos anos antes de Cristo. Scliar me pregou uma peça, e uma peça das boas: a história que ele tem a nos contar é muito mais forte que isso. A matéria dele não é a época, são as pessoas, é o rei, o pastorzinho, a rainha de Sabá, é a nossa escritora, como diz o crítico Harold Bloom numa citação de The Book of J, uma mulher “culta e irônica, destacada figura da elite do rei Salomão [...]; uma mulher, que escreveu para os seus contemporâneos como mulher”. E era doida por sexo – como todo mundo.

O romance é movido pelo orgasmo: ao deixar a pedra ovóide de lado e tentar encontrar um homem de verdade ainda quando morava na aldeia, a nossa escriba se apaixona pelo pastorzinho que, entre uma cabra e outra, tem um caso sua irmã; nossa personagem vai para Corte e acaba caindo de amores pelo rei, fazendo de tudo – até rebelião no harém – para tentar ir pra cama com ele já que com tantas esposas seu dia nunca chegaria; na primeira versão do gêneses que ela escreve, Adão e Eva faziam sexo rolando na grama, em tudo quanto era canto, em todas as posições, o que seria muito mais interessante, de maneira que “o encontro dos dois era, portanto, uma espécie de Big-Bang do sexo, muito Big e muito Bang”; e Deus não os expulsaria do Paraíso, pelo contrário, dava era muita força, porque agora eles conheciam o amor e iam poder viver a vida como ela é, cheia de som e de fúria – como no livro do Faulkner. É exatamente pra fazer sexo que ela escreve a Bíblia, acreditando que o rei irá recompensá-la quando o trabalho estiver terminado.

Enfim, o livro olha para a intrínseca relação entre a existência e o amor, e está analisando isso através do ponto de vista dessa mulher do século X antes de Cristo, uma criatura ao mesmo tempo questionadora dos valores da época e perfeitamente imersa naquela sociedade. A escriba não quer ser livre do rei como o pastorzinho pensa enquanto os dois conversam na cena que se desenrola no quarto dela, perto do fim do livro; ela não propõe rebelião no harém para que a mulher seja considerada um ser e não uma propriedade; antes, a feia, como ela se denomina muitas vezes, luta por sua felicidade, que não está distante, mas muito perto, o que acaba tornando tudo docemente angustiante. Assim, não haverá vida, nem pra personagem, pra mim ou pra você, leitor, enquanto não matarmos o nosso leão da Neméia; e, como se ele ressurgisse igual outro animal do imaginário grego, teremos de matá-lo de novo e de novo, durante todos os dias, até que então, sem mais podermos, seremos devorados por ele. Mas se ela é devorada, só a atenta leitura do livro dirá – ou não.

É interessante notar também como o autor consegue lidar com o texto bíblico, suas passagens, suas histórias. Há sempre um questionamento desse Velho Testamento; não tentando ser uma indagação sociológica, mas uma perspectiva leve, com humor, sobre o que realmente é essa história milenar e canônica, cheia de incongruências, repressões e preconceitos. Não é um livro bíblico, é bom dizer – embora Deus e os personagens do povo eleito estejam presentes. E a nossa protagonista também nem é Sherazade – embora seja uma figura feminina, detentora de um invejável repertório ficcional. Scliar cria um universo muito próprio, com opiniões às vezes bastante ferinas sobre as pessoas e situações.

Publicado em 1999, o romance conta a história de uma das esposas do rei Salomão num suntuoso palácio dez séculos antes de Cristo


A Mulher que Escreveu a Bíblia é a divertida narrativa de uma mulher que criou o céu, a terra, os mares, o homem, a mulher, colocou-os no Paraíso e deu-lhes filhos e netos, povoou o mundo inteiro e era apaixonadíssima pelo rei Salomão. Que mais? Ah, sim, ela era feia.

2 Comments:

Blogger Débora Medeiros said...

Adorei a resenha, muito divertida! Se espelhar o livro, quero muito ler, hehehe!

6:53 PM  
Blogger Marcelo Holecram said...

Não posso garantir que vou passar a dica pra frente... só conheço o Scliar (é assim q escreve?) de uma publicação comemorativa da vinda dos judeus ao Brasil - ele e um escritor de Belém (?) estão lá - financiados por alguma instituição cultural!!!

Ademais, com as amigas q eu tenho, tome por exemplo o caso de BRÍGIDA, A EX-FRÍGIDA (caudilha, bibliotecária e colecionadora de borboletas,sócia-investidora das saunas THE LESBUS pelo mundinho afora); essas meninas têm uma história de vida de fazer corar as esposas de Salomão!!! E olha que elas são feias pra caralho, quer dizer pra baralho !!!

P.S> mas a resenha tá boa, vai.. bem levinha... parabéns !!!

10:35 AM  

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