Wednesday, May 30, 2007

Para Além da Roda: O que as tradições nos ensinam

Principalmente a esperar. É verdade que estamos muito apressados, que a globalização taí, a gripe aviária, a terceira guerra, tantas coisas, enfim, que o mundo está desesperado e que, se queremos alguma ligação com este ou aquele ser humano, no mínimo não podemos negar que estarão correndo e que precisamos pega-los. Mais rápidas serão nossas letras!, devemos estar nos dizendo. Retiremos então a muralha de parágrafos, pontuações, adjetivações. Os medos, os preconceitos, as classificações. E, enfim, onde estamos? No mundo que buscamos: aquele mesmo mundo da correria, cujos seres, com os quais tentamos travar contato incessantemente, nos entendem menos ainda que antes. Nós, que agora falamos “em línguas”, como se faz nas igrejas pentecostais. E (continuemos bíblicos) rumamos de mala e cuia para a Babel.

,começar um parágrafo com vírgula não tem nada demais. Inclusive posso até continuar escrevendo como se fizesse uma frase regular quando (verdade) (não) (fazer): (fazer) (não) (verdade). +, Se ( já ) mos

COM
CRE
TOS ,

Será que não devemos esperar um pouco, parar um pouco, e ouvir o mofo? Ler as lápides do que seriam nossos precursores e pensar: “que cilada em nossas ambições”? Enfim, ouvir a tradição?

É verdade que, muitas vezes, são péssimas as soluções encontradas por nossos avós de espírito. A arte como representação pura e simples da realidade, os antigos ideais de beleza e de cultura, a visão do artista como um santo e mártir, formalismos e repetição de temas com os quais hoje não nos identificamos, os excessos do mecenato sobre o ato da criação, enfim... foram coisas que em algum tempo e de certa forma já foram a rotina, e que, também “de certa forma”, ainda nos visitam hoje.

Mas, num mundo sem verdades absolutas, em que o máximo que temos é o argumento, por que ignorar os antigos, mesmo os gagás? Se quisermos destruí-los (o que não é o caso), devemos primeiro entender o que são, sob pena de acabar repetindo aquilo que neles criticamos. Ou seja, antes de fazer um parágrafo que começa com minúscula, devemos pensar se o fazemos com sinceridade ou não. Devemos nos perguntar: o que é uma minúscula? O que é um parágrafo? Por que já não pensaram no parágrafo iniciando com uma vírgula? As respostas não serão exatas, nem únicas.

Para não me alongar, posso dar o exemplo da forma. Abaixo as fôrmas!, vamos lá gritar. Mas a métrica, a forma tradicional, as solenidades deste ou daquele gênero, elas levam em si não apenas burocracias, mas conteúdo que as anima desde quando foram inventadas. O percurso pelo qual nos guia um soneto (ao menos os sonetos tradicionais) é reto mas cheio de mistérios e encantamento. Assim é o haicai, a ode, a epopéia, enfim. Mas, já pensando num uso não-ortodoxo, tais formas são também idéias. Por isso pôde Murilo Mendes fazer verdadeiros sonetos brancos; Hilda Hilst tem um livro de odes de bela assimetria; o haicai, como “conceito” agüenta até mesmo o haicai concreto, sem qualquer dos três versinhos metrificados...

É possível, enfim, como nos quadros de Rembrandt ("Aristóteles contemplando o busto de Homero"), vestir os antigos como nós mesmos. Hoje em dia, ainda por cima, podemos vesti-los de qualquer coisa, ou mesmo deixá-los nus. Mas, por favor, deixemos o velhinho falar... nem que seja para nos xingar.

Monday, May 28, 2007

Caros leitores,

Caso ainda não tenham notado, estamos tentando organizar melhor o blog do Por Mais Leitura. Criamos agora duas séries de posts que se pretendem regulares. Uma vai se chamar ''Minha Leitura'', irá ao ar toda segunda e vai se constituir no relato das impressões de alguém sobre algum livro ou alguma obra de arte. O começo dessa série foi o texto ''Em defesa do caderno de Lori Lamby'', do Ary. A outra série, chamada ''Para além da roda'', seria de pequenos artigos a respeito dos temas discutidos nas Rodas de Leitura do Dragão do Mar, sendo postados toda quarta. O primeiro texto foi no caso da Marília, que fala sobre o Moreira Campos, já que o tema desse mês foi ''Autores Cearenses''. Além disso, nas sextas-feiras temos post fixo também, mas uma postagem mais livre e sem tema pré-definido, que fica ao cargo do Alan.

Por enquanto quem está colaborando são somente os membros da equipe fixa do grupo, mas esse é também um espaço aberto para todos aqueles que quiserem contribuir com textos para o site. Por isso, escreva sobre o autor que lhe interessa e sobre o qual você gostaria de dizer alguma coisa. E lembrando que o tema desse mês de Junho nas rodas é Literatura e Sexo, portanto dêem as suas contribuições!


Para mandar textos, saber mais e etc: pormaisleitura@gmail.com

Minha Leitura: Dom Casmurro

A capa da coleção Grandes Leituras, da FTD: olhos de ressaca?

Capitu traiu ou não traiu Bentinho? A pergunta vem gerando polêmica desde que Dom Casmurro foi publicado, em 1900, mas não me parece, nem de longe, a questão mais relevante dentro do romance. E não somente levando em conta o retrato irônico e cáustico que Machado de Assis traça da classe abastada do Rio de Janeiro no fim do século XIX, entre outras várias reflexões que este levanta sobre a situação do ser humano no mundo, da vida que é uma ópera e etc...

Essa polêmica, porém, talvez seja fruto de uma das contribuições mais interessantes que Machado de Assis deu para a literatura brasileira: trata-se da descredibilização do narrador. Isso porque fica mais que claro pelo modo como a história é contada que tudo se trata do ponto de vista de Bentinho, que mais do que relatar os fatos, analisa os acontecimentos e as pessoas, de seus comportamentos aos seus pequenos gestos. Vem daí, provavelmente, o pouco apego do narrador pelas descrições minunciosas, se concentrando justamente em dissecar esses pequenos gestos, os detalhes. E é aí que aparecem os olhos que tragam tudo ao seu redor, os famosos olhos de ressaca de Capitu; o olhar de censura que Bentinho dá a sua tia quando esta maldiz sua amada ainda criança; a voz e o jeito de rir de Escobar, que se reproduzem no filho que Bentinho tem com Capitu, o que praticamente assinala a suspeita de sua paternidade, entre outros pequenos traços bastante importantes na definição dos personagens da obra de Machado.

Da mesma forma, o jogo intrincado em que ele prepara essas suspeitas é construído basicamente de pequenas sutilezas, espalhando indícios relevantes tanto a favor quanto contra a lealdade de Capitu. Qualquer resposta para esse enigma acaba sendo dada pelo leitor pelo seu próprio risco. Ela, aliás, possivelmente revela mais sobre os valores e predisposições do leitor do que propriamente as do autor, Machado de Assis, que não se pode confundir com o narrador, Bentinho. Este fez também uma escolha pelo seu próprio risco, jogando fora um casamento feliz se baseando apenas em pequenos ciúmes e na suposta semelhança de seu filho com seu amigo Escobar. E o que essa falta de consistência revela é justamente um dos aspectos que me parecem pouco explorados nas leituras feitas sobre a obra, que é o profundo machismo da figura central do romance. Bentinho não consegue lidar sequer com a suspeita de que sua companheira tenha lhe traído com seu melhor amigo, colocando toda a sua vida a ruir por causa dessa dúvida.

Ora, mesmo que Capitu tivesse traído o marido, o comportamento deste seria extremamente questionável (e é melhor não ler isso aqui, se você não leu o livro), afinal não é nada razoável quase tentar matar o próprio filho, e pensar em matar a esposa e cometer suicídio ainda por cima (pode voltar a ler). Além de machista, o personagem se insere num contexto extremamente patriarcal, e é assim que ele mesmo se configura. Prova disso(aqui é melhor não ler novamente) é que ele não pensa duas vezes em trocar de lugar com um escravo para cumprir a promessa da mãe de ter um filho ordenado padre, livrando-se do impecilho para seu relacionamento com Capitu, o que toma boa parte do livro.

Outro sintoma desse esnobismo é a ocasião do enterro do ‘’amigo’’ pobre de Bentinho, em que ele não tem permissão da família para ir por acreditarem que não o ‘’evento’’ não era tão digno de sua presença. Isso sem falar no ambicioso José Dias, que vive de puxar o saco da família do protagonista, o que inicialmente irrita Bentinho, mas acaba ele se tornando justamente um de seus únicos companheiros no final da vida. Interessante notar também que quase todos os personagens da trama são pessoas idosas mais ou menos amarguradas, que são justamente a família do personagem principal: sua mãe Dona Glória, o Padre Cabral, Tio Cosme, Tia Justina e José Dias. Ah, claro, sem esquecer do Dom Casmurro, apelido que Bento Santiago ganha no final da vida pelos seus (poucos) amigos:

‘’Não consultes dicionários, Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo" (Cap. I).

E não era realmente ele quase fidalgo? Tanto que via como virtude magnífica que Escobar conseguisse fazer o cálculo de cabeça da soma de todos os alugueis que sua mãe possuía... De qualquer forma, boa parte da trama se concentra na infância e adolescência do personagem, períodos em que este se apresenta bem mais carismático e divertido, posto que cheio relatos de sua imaginação e devaneios, característica que faz lembrar bastante Brás Cubas. Aliás, muita coisa faz lembrar o Brás, que foi o único livro do autor que li no colégio, e que pretendo reler em breve...

Ler Dom Casmurro assim, falando nisso, fora da obrigação do colégio, se revela algo muito mais interessante e prazeroso. E não só porque toda obrigação priva em grande parte o prazer da leitura, mas principalmente porque, como disse uma amiga, seria impossível entender toda aquela análise irônica e complicada que o escritor faz da sociedade burguesa do final do século XIX com 15 anos de idade, que é quando normalmente a gente tem que lê-lo na escola. Mas isso é assunto já pra outra discussão. O que eu posso dizer é que é um livro interessantíssimo, cheio de reflexões e tiradas espirituosas, com um ritmo bastante ágil, ainda mais para um livro do século trazado. Se você ainda não leu esse clássico, é uma leitura mais do que recomendável. Se teve que ler por obrigação no colégio, aí sim, acredito, é que vale apena ler assim, a seu bel-prazer.

Friday, May 25, 2007

#17 Roda de Leitura no Dragão do Mar

Mais uma vez estamos convidando todos aqueles que se interessam por Literatura e estão dispostos à participar de uma roda de idéias entre textos e literatura. O tema desse encontro é ''Autores Cearences'', levando mais adiante a discussão da Cidade, levantada no mês passado em um dos encontros. Nada melhor para falar da cidade do que abranger para o Estado e falar sobre o que se faz em termos de literatura aqui, no Ceará. Como todos(ou quase todos) somos cearenses, cada um pode levar seu texto, é claro, assim como textos de outros autores. E é bem vindo, como sempre, mesmo quem quiser ir pra ficar caladinho, só prestando atenção. Porque essa também é uma troca de conhecimentos.

Botar a literatura em pauta, discutir nossa literatura, saboreá-la. É isso que a gente vai fazer amanhã, a partir das 15h na biblioteca Leonilson, um espaço que tentamos criar para todos os que estiverem interessados em colocar a arte da escrita em pauta.

quando: sábado, dia 26 de maio
horas: 15-18h
local: biblioteca de artes visuais leonilson(dentro do Museu de Arte contemporânea do Dragão)
quanto: gratuito
tema: autores cearenses
entrada: franca

Wednesday, May 23, 2007

Dos meus Mestres: Moreira Campos, cearense.



Conheci Moreira Campos, feliz ou infelizmente, através do vestibular. Talvez tivesse sido melhor conhecer a sua obra em outro momento e ter mais tempo de me deter nela – mas hoje posso faze-lo, e, por isso, escolhi justamente o Moreira Campos pra comentar. Eu li apenas 4 livros, mas é um dos meus autores de cabeceira, por ter plena convicção de que poucos conseguiram dizer tanto com o aparente tão pouco. Fala-se muito da “concisão moreiriana” (e que aqui eu diga da minha aversão a esses termos. Penso que nem o Pedro Salgueiro, quando ele ouve de professores de pré-vestibular, “a obra salgueiriana” ... Eu certamente teria espasmos se ouvisse alguém falar da “obra mariliana”, mas enfim!), o que eu sei é que ele foi bem mais que isso.
Quem estudou, como eu, com professores que foram alunos dele, sabe do carinho que todos lhe tinham. Das histórias com o fusca verde de que ele não se desfazia, da rosa que todos os dias ele procurava e colhia pra esposa, às 17h pontualmente, enquanto ela se arrumava pra receber a dita rosa – e por decênios assim eles fizeram. Conta-se que foram perdidamente apaixonados, e até no leito de morte ele ainda dizia as juras de amor. E dando à César o que é dele mesmo, graças às aulas de pré-vestibular, muita curiosidade eu tive de ir atrás de outros livros e não ficar só no “Dizem que os cães vêem coisas”.

Essa seleção que foi feita pelo próprio autor, é de uma riqueza incrível. E sou de opinião, tendo lido outros 3 livros do autor, que ele escolheu criteriosamente os melhores contos para a antologia final, pouco antes de sua morte.

Dele que, a meu ver, é o maior escritor cearense (Na frente dele, dos que eu conheço, não tem José de Alencar, Rachel de Queiroz, concretistas, não tem ninguém), muitos contos me ficaram como inesquecíveis - com o perdão do saudosismo.
Falando sobre o "Dizem que os cães vêem coisas", pela notoriedade da obra, cito do começo do livro, na fase dita impressionista, o “Lama e folhas”, um conto longo e belíssimo em que ele diz uma frase que eu sempre lembro, mais ou menos assim: “A velha era cheia de arestas”. Acho genial como ele lidava com metáforas. Com os flash-back em poucas palavras, com os instantâneos- do-real, a técnica cinematográfica das imagens nos contos curtos. Aquela teoria de Tchecov que é citada no livro dele, e que também acho sempre bom lembrar: “se a espingarda não vai atirar no conto, tiremos então de cima da mesa”. Conforme diz Hélio Pólvora: "Moreira Campos, “embora não sendo um tchekhoviano perfeito, dele (Tchekhov) se aproxima quando livra o conto de uma sobrecarga excessiva e procura atingir logo o alvo, localizar logo o nervo exposto”.

Situando-o historicamente, segundo Assis Brasil, "Moreira Campos faz, no Ceará, a ligação entre o conto de história, ainda vigente nos primeiros anos do Modernismo, e o conto de flagrante, sugestivo, que as novas gerações, a partir de 1956, desenvolveriam em muitos aspectos criativos”.

Gosto muito também do conto “As corujas”, por entender que ele sabe bem trabalhar com o inaudito, os silêncios e os medos das personagens. O “Doze parafusos” em que ele fala do desespero da esposa que vai cometer suicídio e tira os 12 parafusos da janela – genial o modo como ele descreve aquela angústia no tirar de cada parafuso! Ainda no Dizem que os cães vêem coisas, estão também os polêmicos “Profanação” (onde um cavalo invade uma igreja atrás de uma égua e lá mesmo procura o acasalamento – e consuma, na frente de todas as beatas), e “Gota delirante”, conto que se pode dizer parcialmente erótico, no sentido de explorar bem a temática sexual, apesar de não ser tão explícita, mas uma narrativa rica em detalhes. Quem não lembra da lenda que foi a irmã Cibele? quem lembra, ri, mas esquece que naquele conto o autor fala da exploração que muitas crianças podem sofrer nas mãos de supostos santos, os padres, as freiras. Provavelmente esse conto foi o escândalo da época, junto com o conto da Maria de Fátima, que falava do relacionamento desta com outra mulher, largando o noivo Pedro, pra desespero da mãe.
Mas não se pense que ele só escreveu de temáticas polêmicas: nos seus contos Moreira Campos também fala da questão urbana, fala do sertanejo, fala das misérias e da vida do homem comum. Comum rico, comum pobre, partindo de uma ótica universalista pra temas específicos sem nunca perder aquela velha cosmovisão fatalista que ele tinha, dizem, só no escrever e não no trato com as pessoas.

Pra quem gosta de narrativas curtas e interessantes, não pode perder a chance de conhecer Moreira Campos que, dentre vários méritos, é expressão da cultura cearense, de nossos costumes. Ele não perde nunca a chance de surpreender, com finais ora inesperados, ora, apesar de esperados, sempre inovadores, seja em linguagem, seja em conteúdo. O estilo de Moreira Campos é inconfundível, pois são poucos os que conseguem fazer o que ele fez: dizer, com poucas palavras, o que muita gente passa a vida tentando explicar de todo jeito.
Moreira Campos está entre os maiores, pra se ter uma idéia, sendo normalmente equiparado a Graciliano Ramos, na concisão da linguagem, e a Machado de Assis, na genialidade.

A comparação pode ser ou não comprovada pelo leitor, quando for tirar suas dúvidas na própria leitura da obra, que recomendo como sendo de nota máxima. Seja o Dizem que os cães vêem coisas, ou as outras Antologias de Moreira Campos que, pelo que li, são todas de seleção muito bem feita. Fica ainda outra sugestão pra quem ainda não teve a oportunidade de ver a recente (mas não tão recente assim) Antologia de Moreira Campos em quadrinhos, que também é bastante interessante:

(e pra quem freqüenta a Biblioteca do Centro de Humanidades da UFC, eu já encontrei vários exemplares por lá =)




Marília Passos

Monday, May 21, 2007

Em defesa do "Caderno rosa de Lori Lamby"

"Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas." Oscar Wilde

"E quem olha, se fode." Lori Lamby

Houve aqui em Fortaleza uma apresentação de Lori Lamby, adaptação do polêmico livro de Hilda Hilst. Não fui, porque não sabia e, talvez, mesmo sabendo, não pudesse ir. Portanto, não sei dizer, nem é a intenção, se a apresentação foi boa, ruim, ou mais ou menos. Sei que foi por demais polêmico, merecendo inclusive protestos inflamados de pessoas da platéia.

Para quem ainda não leu, é bom que saiba que o livro é supostamente (nunca confie no narrador) um diário das aventuras sexuais de uma menina de 8 anos, de como ela gosta da coisa toda, especialmente pelo dinheiro. Supostamente era a criança levada a fazer isso, não contra a sua vontade, pelos próprios pais, que, por sinal, não são pobres.

Atriz Iara Jamra interpretando Lori no cinema.

É verdade que o centro do problema foi que a organização colocou CENSURA LIVRE, onde obviamente não há. Desleixo. Mas o protesto mais incisivo de uma pessoa da platéia, pelo que me disseram, foi de uma senhora que trabalhava em algum órgão (não lembro bem) contra a exploração sexual de crianças e adolescentes. Sua crítica não era tanto por ter tido que esconder, com muita razão, seus filhos daquela peça ADULTA, mas porque o próprio trabalho de Hilda Hilst estaria profanando uma questão seríssima, da prostituição infantil, transformando em chacota.

Felizmente, esta senhora está totalmente equivocada.

O primeiro convidado a fazer as ilustrações do livro recusou o trabalho. Como desenhar tais situações (uma menina de 8 anos que gosta de prostitui-se) impunemente? Quem enfrentou a situação foi ninguém menos que o famoso e corajoso cartunista Millor Fernandes, escolha, na minha opinião, perfeita. “Dois velhos que perderam a vergonha”. Foi o que disseram de Millor e Hilda. Não se precisa dizer nada: já haviam caído na armadilha do livro. Não vou revelar, pra que não leu, os esclarecimentos e revelações que o livro guarda, mas não posso deixar de comentar o que se perde da mensagem do livro com nossos preconceitos, como já tentei fazer no dia da roda de leitura em que ouvimos falar desse caso.

Primeiro, e na minha opinião, o livro fala de tudo, menos de uma menina de 8 anos que se prostitui. O tema do livro não é prostituição infantil, que pode ser um tema apenas tangencial. A prostituição de Lori é um elemento de absurdo, que sempre serve, como nos quadros surrealistas, para retirar os símbolos do lugar onde os colocamos por mero comodismo. Mexe com a mente, com nossos sentimentos de ódio contra os exploradores sexuais, com nossa visão de criança, com nossa visão de sexo, com nossa visão de nós mesmos. E se pergunta, para tudo isso, novos significados, novas reflexões.

Mas, como disse, esse é só o efeito inicial a fim de abrir portas a outros sentidos e universos. A metalinguagem, para mim, é o principal foco do livro. O pai de Lori é um escritor. Como a Hilda Hilst em seu primeiro período criativo (vamos dizer assim), ele escrevia sobre os temas mais profundos sem tocar no corpo grotesco, no interior dos pudores, nem mesmo quando esses intestinos tocavam a alma ou Deus. Não que não houvesse sensualidade, mas sempre as grandes palavras, as palavras eternas e sutis. Era hora de mudar. Mas porque? Porque não dava dinheiro. O editor do pai de Lori queria que ele escrevesse sacanagens, “bandalheiras”, para que fosse bem visto e bem comprado.

O pai de Lori, como a própria Hilda, defendia um tipo de literatura que era impossível tornar-se porcaria e pornografia, mesmo que a autora, em alguns momentos, reclame que assim seja considerada. Por isso, sua produção é um híbrido desconcertante que a liga a uma tradição do grotesco em que os buracos obscenos são caminhos para Deus.

Lori Lamby, como o pai e como Hilda Hilst, é também uma escritora. Não é uma prostituta. LL é, acredito, o ângulo pelo qual HH quis fotografar o problema da literatura em relação à falsa dicotomia entre corpo e alma e à verdadeira dicotomia entre o respeito ao nosso corpo/alma e a banalidade, a barbárie, a “bandalheira”. Um livro como “O caderno rosa de Lori Lamby”, por isso mesmo, não pode ser a favor da exploração sexual de crianças e adolescentes, porque o que é pedido em sua literatura é a elevação do homem de animal oco para animal espiritual.

Compare a capa da edição italiana (acima) com o desenho de Lori Lamby feito pela própria Hilda Hilst.

E porque então Lori Lamby escreve em seu caderninho que gosta tão escandalosamente de sexo com homens mais velhos? Porque ela diz que adora o dinheiro que vem do sexo? Por que se a proposta do livro não é a mesma da obra de Hilda? Ora, basta ler a própria Lori. Ela, escritora que é, não escreve só: está sempre a conversar com todo o mundo a sua volta. E eis a realidade, dita por um dos supostos exploradores de Lori: todos somos nojentos, asquerosos.

Lori reproduz fetiches baratos e vendidos de filmes pornôs (por exemplo, o “cenário de praia”), a paixão pelo dinheiro dos homens (que a faz inteligentemente ligar dinheiro e sexo), dialoga com os textos do próprio pai (que escreve o seu trabalho, que é “o caderno negro”. Ele o acha tão horroroso e depravado que o coloca em uma estante que chama de “bosta”)... Observa atentamente tudo do jogo da realidade.

Ao mesmo tempo que gostava da atenção da mídia e da repercussão de seus livros "obscenos", ssentia falta que lessem sua grande obra lírica. Lírica em sentido estrito.

Por deglutir o mundo dessa forma e cuspi-lo sem sistemas, sem pudores e sem nem saber direito do que falava, Lori Lamby acha a fórmula que estamos, literatos ou não, fadados a repetir: estamos descobrindo esse nosso mundo quando ele está dominado por uma profunda crise moral e só podemos fazer contra ela a partir dela própria. E, conclusão minha, elege o corpo para chegar à alma, não o contrário. A epígrafe do livro, que fiz epígrafe deste texto também, não diz coisa muito diferente.

Mais ilustrações, fotos, informações, na mesma boa fonte de onde eu tirei esta exposição virtual.

Friday, May 18, 2007

Até a ficção esquece dos fracos e oprimidos?

Literatura e perspectivas sociais


nota de explicação: a pesquisa completa é extensa para os padrões deste blog e por isso ficará como link para quem quiser permear suas 38 interessantíssimas páginas. Foram pesquisados 123 romances da Record, 76 da Companhia das Letras, 59 da Rocco somando um total de 258 livros num período que compreendeu 14 anos de 1990 até 2004. É um trabalho fartamente preenchido com dados quantitativos - tabelas, gráficos, etc. - que revelam muito mais do que simplesmente números. E não sou eu que vou estragar a surpresa...



"(...) a literatura não é neutra, não está
'acima' de outros meios de representação, como o cinema, o jornalismo ou a
televisão, e não é intocável. Nossa posição diante do texto literário não é de
reverência, mas de crítica."
Regina Dalcastagnè



por Regina Dalcastagnè (Universidade de Brasília/CNPq)

Ao interromper suas atividades e abrir um romance, o leitor busca, de alguma maneira, se conectar a outras experiências de vida. Pode querer encontrar ali alguém como ele, em situações que viverá um dia ou que espera jamais viver. Mas pode ainda querer entender o que é ser o outro, morar em terras longínquas, falar uma língua estranha, ter outro sexo, um modo diferente de enxergar o mundo. O romance, enquanto gênero, promete tudo isso a seus leitores – que podem ser leitoras, que têm cores, idades, crenças, instrução, contas bancárias, perspectivas sociais muito diferentes entre si. Portanto, a promessa de pluralidade do romance, um sistema de “representações de linguagens”, nos termos de Bakhtin(1), envolve não só personagens e narradores(as), mas também seus(suas) leitores(as) e autores(as). Reconhecer-se em uma representação artística, ou reconhecer o outro dentro dela, faz parte de um processo de legitimação de identidades, ainda que elas sejam múltiplas. Daí o estranhamento quando determinados grupos sociais desaparecem dentro de uma expressão artística que se fundaria exatamente na pluralidade de perspectivas.

Assim, esta pesquisa tem início com um sentimento de desconforto diante da literatura brasileira contemporânea, desconforto causado pela constatação da ausência de dois grandes grupos em nossos romances: dos pobres e dos negros. Ao pensar na realização de um grande mapeamento da personagem do romance brasileiro atual – com obras publicadas entre 1990 e 2004 –, era atrás deles que estávamos indo, tentando entender sua ausência a partir da compreensão do que
estava se sobrepondo a eles. De um modo geral, esse tipo de ausência costuma ser creditada à invisibilidade desses mesmos grupos na sociedade brasileira como um todo. Neste caso, os escritores estariam representando justamente essa invisibilidade ao deixar de fora das páginas de seus livros aqueles que são deixados à margem de nossa sociedade. A pergunta que surgia então era se para fazer isso não seria preciso, muito mais que excluir esses grupos de suas histórias, mostrar alguma tensão existente, provocada pelos que não parecem estar ali.

Quando se afirma que algo é invisível, a situação é, de algum modo, tornada objetiva. Ser invisível seria a qualidade de um objeto (uma pessoa, um grupo de pessoas). Mas talvez o reverso da invisibilidade seja justamente a dificuldade de enxergar. Passaríamos, então, da pretensa objetividade de uma situação, para o problema da subjetividade do observador. É ele, o observador (que somos cada um de nós, nossos escritores preferidos, nossos melhores narradores) que escolhe (obviamente imerso em sua própria experiência, de classe, de gênero, de vida) o que quer, o que pode (o que queremos, o que podemos) ver. Por isso mesmo, não
nos bastaria mapear as personagens dos romances, seria preciso saber também quem eram os seus autores. Se negros e pobres apareciam pouco como personagens, como produtores literários eles são quase inexistentes. A partir dessas ausências, foram-se constatando outras, entre as personagens mesmo – das crianças, dos velhos, dos homossexuais, dos deficientes físicos e até das mulheres. Se eles estão pouco presentes no romance atual, são ainda mais reduzidas as suas chances de terem voz ali dentro. Os lugares de fala no interior da narrativa também são monopolizados pelos homens brancos, sem deficiências, adultos, heterossexuais, urbanos, de classe média...

O silêncio dos grupos marginalizados – entendidos em sentido amplo, como todos aqueles que vivenciam uma identidade coletiva que recebe valoração negativa da cultura dominante, sejam definidos por sexo, etnia, cor, orientação sexual, posição nas relações de produção, condição física ou outro critério(2) – é coberto por vozes que se sobrepõem a ele, vozes que buscam falar em nome desses grupos, mas também, embora raramente, pode ser quebrado pela produção literária de seus próprios integrantes. Mesmo no último caso, tensões significativas se estabelecem: entre a “autenticidade” do depoimento e a legitimidade (socialmente construída) da obra de arte literária, entre a voz autoral e a representatividade de grupo e até entre o elitismo próprio do campo literário e a necessidade de democratização da produção artística. O termo chave, neste conjunto de discussões, é “representação”, que sempre foi um conceito crucial dos estudos literários, mas que agora é lido com maior consciência de suas
ressonâncias políticas e sociais.

De fato, representação é uma palavra que participa de diferentes contextos – literatura, artes visuais, artes cênicas, mas também política e direito – e sofre um processo permanente de contaminação de sentido(3). O que se coloca hoje não é mais simplesmente o fato de que a literatura fornece determinadas representações da realidade, mas sim que essas representações não são representativas do conjunto das perspectivas sociais. O problema da representatividade, portanto, não se resume à honestidade na busca pelo olhar do outro ou ao respeito por suas
peculiaridades. Está em questão a diversidade de percepções do mundo, que depende do acesso à voz e não é suprida pela boa vontade daqueles que monopolizam os lugares de fala.

No entanto, um dos sentidos de “representar” é, exatamente, falar em nome do outro. Falar por alguém é sempre um ato político, às vezes legítimo, freqüentemente autoritário – e o primeiro adjetivo não exclui necessariamente o segundo. Ao se impor um discurso, é comum que a legitimação se dê a partir da justificativa do maior esclarecimento, maior competência, e até maior eficácia social por parte daquele que fala. Ao outro, nesse caso, resta calar. Se seu modo de dizer não serve, sua experiência tampouco tem algum valor. Trata-se de um processo que está ancorado em disposições estruturais; segundo Foucault, “em toda sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por certo número de procedimentos que têm por papel conjurar seus poderes e seus perigos, dominar seu acontecimento aleatório, esquivar sua pesada e temível materialidade” (4).

O controle do discurso, denunciado pelo filósofo francês, é a negação do direito de fala àqueles que não preenchem determinados requisitos sociais: uma censura social velada, que silencia os grupos dominados. De acordo com Pierre Bourdieu, “entre as censuras mais eficazes e mais bem dissimuladas situam-se aquelas que consistem em excluir certos agentes de comunicação excluindo-os dos grupos que falam ou das posições de onde se fala com autoridade” (5). O fundamental é perceber que não se trata apenas da possibilidade de falar – que é contemplada
pelo preceito da liberdade de expressão, incorporado no ordenamento legal de todos os países ocidentais – mas da possibilidade de “falar com autoridade”, isto é, o reconhecimento social de que o discurso tem valor e, portanto, merece ser ouvido.

O processo se completa graças à introjeção dos constrangimentos estruturais pelos agentes sociais, que faz com que os limites impostos ao discurso não sejam excessivamente tensionados, já que cada um, via de regra, mantém-se dentro de seu espaço “autorizado”. Ainda conforme Bourdieu, “a censura alcança seu mais alto grau de perfeição e invisibilidade quando cada agente não tem mais nada a dizer além daquilo que está objetivamente autorizado a dizer: sequer precisa ser, neste caso, seu próprio censor, pois já se encontra de uma vez por todas censurado, através das formas de percepção e de expressão por ele interiorizadas, e que impõem sua forma a todas as suas expressões” (6). É assim que determinadas categorias sociais que são excluídas do universo da política – trabalhadores e mulheres, por exemplo – tendem a se julgar incapazes de ação política e, portanto, a aceitar a posição de impotência em que foram colocadas.

O mesmo se pode dizer da expressão literária. Aqueles que estão objetivamente excluídos do universo do fazer literário, pelo domínio precário de determinadas formas de expressão, acreditam que seriam também incapazes de produzir literatura. No entanto, eles são incapazes de produzir literatura exatamente porque a definição de “literatura” exclui suas formas de expressão. Ou seja, a definição dominante de literatura circunscreve um espaço privilegiado de
expressão, que corresponde aos modos de manifestação de alguns grupos, não de outros.

Segundo afirma Compagnon, “todo julgamento de valor repousa num atestado de exclusão. Dizer que um texto é literário subentende sempre que outro não é” (7). Não se está sugerindo que se abra mão dos juízos de valor na discussão da literatura – embora seja possível, e necessário, entendê-los como construções sociais, não como encarnações de um Belo transcendente. No entanto, se há uma valoração sistematicamente positiva de uma forma de expressão, em detrimento de outras, o resultado é fazer da manifestação literária o privilégio de um grupo
social (8).

O campo literário reforça esta definição dominante de literatura, através de suas formas de consagração e de seus aparatos de leitura crítica e interpretação. Campo, segundo Pierre Bourdieu, é “uma rede ou uma configuração de relações objetivas entre posições. Estas posições são definidas objetivamente em sua existência e nas determinações que elas impõem a seus ocupantes, agentes ou instituições, por sua situação (situs) atual e potencial na estrutura da distribuição das diferentes espécies de poder (ou de capital) cuja posse determina o acesso aos
benefícios específicos que estão em jogo no campo” (9). O conceito de Bourdieu permite entender melhor as relações que se estabelecem entre os escritores (definindo as correntes, as vanguardas e os “grandes nomes”) e entre o mundo literário e o universo social como um todo (demarcando a autonomia do campo literário e sua comunicação com o campo do poder) (10).

Com essa circunscrição de quem possui legitimidade para produzir literatura, perde-se em diversidade. Não há, no campo literário brasileiro, uma pluralidade de perspectivas sociais. De acordo com a definição de Iris Marion Young, o conceito de “perspectiva social” reflete o fato de que “pessoas posicionadas diferentemente [na sociedade] possuem experiência, história e conhecimento social diferentes, derivados desta posição” (11). Vividas de forma menos ou mais consciente, as perspectivas sociais são o reflexo, nas maneiras de ver e entender o mundo, da
pluralidade de condições em que as pessoas se encontram neste mesmo mundo: As experiências culturais de povos ou grupos religiosos distintos, bem como de grupos reagindo a uma história de dor ou de opressão estrutural, muitas vezes oferecem interpretações refinadas de sua própria situação e de suas relações com os outros. A perspectiva pode aparecer em relatos e canções,
em brincadeiras e jogos de palavras, bem como em formas de expressão mais afirmativas e analíticas (12).

Assim, mulheres e homens, trabalhadores e patrões, velhos e moços, negros e brancos, portadores ou não de deficiências, moradores do campo e da cidade, homossexuais e heterossexuais, umbandistas e católicos vão ver e expressar o mundo de diferentes maneiras. Mesmo que outros possam ser sensíveis a seus problemas e solidários, nunca viverão as mesmas experiências de vida e, portanto, verão o mundo social a partir de uma perspectiva diferente. Por mais solidário que seja às mulheres, um homem não vai vivenciar o temor permanente da agressão sexual, assim como um branco não tem acesso à experiência da discriminação racial ou apenas um cadeirante sente cotidianamente as barreiras físicas que dificultam ou impedem seu trânsito pelas cidades.

Esta preocupação com a diversidade de vozes não é um mero eco de modismos acadêmicos, mas algo com importância política. Pelo menos duas justificativas para tal importância podem ser dadas. Em primeiro lugar, a representação artística repercute no debate público, pois pode permitir um acesso à perspectiva do outro mais rico e expressivo do que aquele proporcionado pelo discurso político em sentido estrito (13). Como isso pode ser alcançado e quais seus
desdobramentos possíveis, tanto em termos literários quanto sociais, é algo que permanece em aberto, mas essa parece ser uma das tarefas da arte, questionar seu tempo e a si mesma, nem que seja através do questionamento de nossa própria posição.

Em segundo lugar, como apontou Nancy Fraser, a injustiça social possui duas facetas (ainda que estreitamente ligadas), uma econômica e outra cultural. Isto significa que a luta contra a injustiça inclui tanto a reivindicação pela redistribuição da riqueza como pelo reconhecimento das múltiplas expressões culturais dos grupos subalternos (14): o reconhecimento do valor da experiência e da manifestação desta experiência por trabalhadores, mulheres, negros, índios, gays, deficientes. A literatura é um espaço privilegiado para tal manifestação, pela legitimidade social que ela ainda retém. Daí a necessidade de democratizar o fazer literário – o que, no
caso brasileiro, inclui a universalização do acesso às ferramentas do ofício, isto é, o saber ler e escrever.

É claro que a exclusão de determinados grupos não é algo exclusivo do campo literário. As classes populares, as mulheres, os negros possuem maiores dificuldades para acesso a todas as esferas de produção discursiva: estão sub-representados no parlamento (e na política como um todo), na mídia, no ambiente acadêmico. O que não é uma coincidência, mas um índice poderoso de sua subalternidade. Foucault já observava a centralidade do domínio do discurso nas lutas políticas travadas dentro da sociedade; segundo ele, “o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de dominação, mas aquilo para que, por que se luta” (15) . No entanto, da mesma forma que é possível pensar na democratização da sociedade, incluindo novas vozes e mesmo presenças na política, na mídia, nas universidades, podemos imaginar a democratização da literatura. A inclusão, no campo literário talvez ainda mais do que nos outros, é uma questão de legitimidade. Neste sentido, a própria crítica e o trabalho acadêmico não são desprovidos de relevância. Afinal, são espaços importantes de legitimação (ao lado dos próprios criadores reconhecidos), como sustenta Shusterman (16). Esta pesquisa busca participar deste movimento, abertamente político, de crítica e legitimação, reconhecendo nosso papel de agentes do campo literário brasileiro.

Antes de apresentar os dados, é importante ressaltar que os impasses da representação literária de grupos marginalizados apresentados aqui não insinuam, absolutamente, qualquer restrição do tipo quem pode falar sobre quem, nem buscam estabelecer que um determinado recorte temático é mais “correto” do que outro. Não se está aqui exigindo uma cópia fiel da realidade brasileira, com escritores consultando os dados do IBGE para escrever seus livros. Esta pesquisa
não tem o objetivo de policiar a atividade dos autores brasileiros. Não estamos julgando autores individualmente, mas indagando um conjunto de obras. Queremos apenas mostrar e entender o que o romance brasileiro recente – aquele que passa pelo filtro das grandes editoras, atinge um público mais amplo e influencia novas gerações de escritores – está escolhendo como foco de seu interesse, o que está deixando de fora e como está representando determinados grupos sociais.
A ausência de uma maior diversidade no conjunto de romances é, segundo tentamos demonstrar, empobrecedora. Mas isto não quer dizer que, dentro do corpus da pesquisa, não existam obras que sejam lidas com prazer, que façam refletir, que ajudem seus leitores e leitoras a compreender melhor o mundo. É possível que muitos destes livros sejam “grande literatura”, seja lá o que isso queira dizer. Nada disso elimina o fato de que o conjunto possui um foco limitado. Enfim, é necessário entender que se buscou um diagnóstico sobre o campo literário
brasileiro atual, sem que nele esteja presente, nem mesmo de forma implícita, a intenção de condenar qualquer obra singular.

Convém esclarecer também que, por suas características, pela abordagem predominantemente quantitativa sobre seu objeto, a pesquisa não detecta ironias nem sarcasmos, não lê entrelinhas, não observa as sutis trocas de olhares entre as personagens. Porém, se o foco da representação literária está em determinados grupos sociais, fazendo com que os outros desapareçam (ou quase), então quem está trocando os olhares? Sobre quem existem entrelinhas a serem decifradas? A pesquisa que aqui se apresenta não pretende esgotar as leituras válidas e
enriquecedoras que se podem fazer da literatura em geral ou do romance brasileiro contemporâneo em particular, que são múltiplas. Mas o quadro geral que dela emerge é, em si, significativo e não pode ser ignorado.

Por fim, encerrando a relação de mal-entendidos a serem evitados, a pesquisa não comunga de nenhuma noção ingênua da mimese literária – que a literatura deve servir como “espelho da realidade”, deve ser o retrato fiel do mundo circundante ou algo semelhante. O problema que se aponta não é o de uma imitação imperfeita do mundo, mas a invisibilização de grupos sociais inteiros e o silenciamento de inúmeras perspectivas sociais. A literatura é um artefato humano
e, como todos os outros, participa de jogos de força dentro da sociedade. Essa invisibilização e esse silenciamento são politicamente relevantes, além de serem uma indicação do caráter excludente de nossa sociedade (e, dentro dela, de nosso campo literário).

De resto, fica nossa constatação de que a literatura não é neutra, não está “acima” de outros meios de representação, como o cinema, o jornalismo ou a televisão, e não é intocável. Nossa posição diante do texto literário não é de reverência, mas de crítica.


1 Bakhtin, Questões de literatura e de estética, p. 205.
2 Para uma discussão do conceito, ver Williams, Voice, trust, and memory.
3 Ver Pitkin, The concept of representation.
4 Foucault, L’ordre du discours, p. 10. Aqui, como no restante do texto, a tradução da citação em língua
estrangeira é de minha autoria.
5 Bourdieu, La distinction, p. 133.
6 Id., ibid.
7 Compagnon, O demônio da teoria, pp. 33-4.
8 É curioso observar que sempre que se fala em democratização da literatura o que está em jogo é sua recepção, com propostas para o aumento do número de leitores em diferentes classes sociais, e nunca sua produção – como se a finalidade última da literatura, especialmente entre as classes populares, fosse o seu simples consumo.
9 Bourdieu, Réponses, pp. 72-3.
10 Bourdieu faz uma detida análise da gênese do campo literário francês em As regras da arte.
11 Young, Inclusion and democracy, p. 136.
12 Id., p. 137.
13 Ver Goodin, “Democratic deliberation within”, p. 106.
14 Fraser, Justice interruptus, cap. 1.
15 Foucault, L’ordre du discours, p. 12.


PARA A PESQUISA COMPLETA, clique aqui.

Tuesday, May 15, 2007

Roda de Leitura Virtual

O Por Mais Leitura lançou essa semana um novo espaço para difundir a leitura: a Roda Virtual. Trata-se na verdade de uma reforma no antigo blog ''PML-Textos'', que originalmente funcionava apenas como um registro dos textos lidos nas Rodas de Leitura que organizamos lá no Dragão do Mar. Esses textos continuam lá, mas estamos aceitando agora também textos enviados por qualquer pessoa, de qualquer lugar, que tenha interesse de colaborar com o site. Para isso, a única exigência é que você tenha comentado em pelo menos um texto que já esteja do site, afinal o que queremos formar efetivamente é uma Roda De Leitura Virtual, evitando um simples acúmulo de textos. Queremos dinâmica, que os autores se leiam e sejam lidos pelos outros, como acontece nas rodas ''reais''.

Por isso, se você se interessou, comece visitando nosso blog, comente em algum dos posts, e mande um e-mail com seu texto para:

rodavirtual@gmail.com

Estamos aguardando a sua contribuição!

Friday, May 04, 2007

JEAN BAUDRILLARD, a simulação desencantada

POR JOSÉ ALOISE BAHIA*


Antes de iniciar a leitura, quero compartilhar alguns detalhes com os leitores da revista Verbo 21. Primeiro, e de maneira proposital, trata-se de um texto teórico e longo, que será publicado em 3 partes. Com várias citações bibliográficas, sem as quais seria difícil construir aquilo que chamo de “Uma Breve introdução à Economia Política do Signo em Jean Baudrillard”. Mas, com paciência e determinação, acredito, alguns chegarão ao final. Ou, mandem logo para a impressora, pois ainda existem pessoas que gostam de papel. Para amaciar o tempo e levá-los adiante, eu pego carona nas palavras de Hygina Moreira Bruzzi, uma das maiores estudiosas no Brasil da filosofia, sociologia, poesia, fotografia, virtualidade e a “pós-modernidade” em Baudrillard: “A letra não mata o espírito. A letra dá à luz o prazer da leitura”.

Segundo, além de homenagear o pensador que inspirou o filme Matrix - mesmo ele não concordando com a idéia -, a proposta é ir um pouco além e resgatar parte das idéias de um ser-humano (gosto mais dessa palavra que expressa um traço de união) que tematizou de modo radical a questão do simulacro na sociedade atual. Os parágrafos a seguir, com várias modificações, estão presentes num dos capítulos teóricos de um livro que estou trabalhando já algum tempo sobre um programa da TV brasileira, o Linha Direta, da Rede Globo de Televisão. E, por último, despertar a reflexão, convidar as pessoas para conhecer o universo e o legado de um autor que escreveu mais de 50 livros, que foi contestado e massacrado dentro da própria roda acadêmica e mídia, e demonstrou uma impressionante capacidade em diagnosticar o panorama da sociedade contemporânea, com seu “melancólico” aparato tecnoestrutural, que “estimula” os menos avisados à condição do delírio, à desinformação, à deformação, à satisfação e o padrão consumista, o vazio e à simulação desencantada.

Jean Baudrillard nasceu em 20 de julho de 1929 em Reims, França, numa família de trabalhadores rurais. Faleceu agora em março de 2007 com 77 anos. Começou a lecionar em 1966 na Universidade de Paris X-Nanterre, onde, juntamente com Henri Lefebvre, completou sua tese de sociologia. Em 1968, publica o livro “O sistema dos Objetos”, influenciado por outro - “Sistema da Moda”, de Roland Barthes. Em 1969, já inserido no grupo de Barthes (Ecole des Hautes Etudes) escreve um importante artigo também sobre a questão dos objetos e a função do signo na revista “Communications”. Seguem-se outros livros: “A Sociedade de Consumo” (1970), “For a Political Economy of the Sign” (1972), “O Espelho da Produção” (1973) e “Seduction” (1979). Rompe com o marxismo já no começo da década de 1970, tornando-se no meio acadêmico, intelectual e político um “ideológico inclassificável”, principalmente depois de publicar “A Transparência do Mal: ensaios sobre os fenômenos extremos”.

Após a metade da década 1980, coincidentemente em seguida a morte de Barthes, assume uma postura bem mais independente em suas análises, não se ligando a grupos ou qualquer corrente de pensamento. Vira um livre-pensador e o “iconoclasta do sistema”. Ao voltar dos Estados Unidos, na França escreve “América” (1986) – que deu origem ao excelente documentário adaptado, com texto e direção de João Moreira Sales e Nelson Brissac Peixoto, realizado em 1989 pela extinta TV Manchete – livro no qual afirma ser os Estados Unidos a realização da utopia da modernidade, e o restante do mundo a versão dublada com legenda no reino das imagens. Isso faz lembrar outro estudo interessante. De autoria de outro francês. Observador atento, Alex de Tocqueville, há quase dois séculos, realizou uma viagem semelhante e escreveu um dos melhores livros de ciência política, adotado em quase todas as universidades do mundo: “A Democracia na América (1835/40)”, ao analisar a sociedade americana, após a guerra da independência em 1776.

Jean Baudrillard e o seu estilo provocante e desafiador, postura profética e apocalíptica, seja em conferências e/ou entrevistas - várias aqui no Brasil - chegou ao auge com as afirmações de que a Guerra do Golfo (1991) não aconteceu. Argumentou que as transmissões televisivas do evento não eram o seu atestado de verdade, credibilidade e com a manipulação das imagens não se podia saber qual dos lados foi vitorioso. Segundo Baudrillard, essa guerra foi um “acontecimento fantoche”. De outra maneira, podemos imaginar que essa guerra foi uma “guerra pós-moderna”. Destituída de “razão”, “vazia” e “simulacral”. Pois a “pós-modernidade” é o tempo/espaço líquido - termo usado por Zygmunt Bauman - caracterizada pelo desaparecimento das grandes narrativas, das ideologias, plugada/ligada pelo excesso e a rapidez das informações, pela estrutura corporal da “carne sem ossos” na confusão entre o real e o imaginário, e a falta de “limites” instrumentais da razão da modernidade, ou seja, a razão da modernidade e a razão contemporânea não dão conta de interpretar as referências e transparências, o mundo dos acontecimentos e as várias manifestações da(s) contemporaneidade(s). Pois vivemos num mundo plural, híbrido, contaminado, fragmentado em constante rotação e (des)rotação. Em fluxo filtrado, contínuo e descontínuo, confuso e aparente. Fugaz. Nos dizeres de Omar Calabrese, habitamos uma “Idade Neobarroca”, na qual tudo é clássico e barroco, moderno e romântico ao mesmo tempo. Confluímos para um mix/mistura do humano e o tecnológico, operacional e pragmático. O reino da ilusão e da desilusão. O reino da morte da própria realidade. Detalhe: Baudrillard sempre recusou o título “pós-moderno”. Vamos dizer que desejasse ser conhecido como um “contemporâneo”. Outro detalhe, que não posso esquecer de mencionar: no final do texto tem uma lista com os principais livros do pensador, publicados por várias editoras no Brasil e Portugal.

Sociedade do Espetáculo - Jean Baudrillard é considerado por muitos o “sociólogo das maiorias silenciosas” e o “filósofo da catástrofe e extinção do real e do social”, por conseguinte um pensador que trabalhou em torno da crítica da “pós-modernidade”, envolvendo toda uma reflexão sobre a tecnologia e suas implicações. Desta maneira, Baudrillard estabelece um novo foco: a reprodução. Em contraste com o paradigma modernista de criação e produção, confirmando o estado de espanto da sociedade contemporânea e a máxima de que não mais existe uma forma crível e aceitável de explicação das coisas em uma era da racionalidade proposital.

O seu objeto de estudo se compõe da análise da sociedade contemporânea enquanto sociedade de consumo, produtora de mitos e estruturas excludentes. A base do pensamento de Jean Baudrillard é construída sob um exame complexo e objetivo dos tempos atuais, em que o ser humano se afasta cada vez mais do mundo real e natural, e se concentra no mundo das imagens da televisão e dos meios de comunicação de massa.

De formação marxista, Baudrillard faz uma reavaliação crítica de alguns postulados escritos por Karl Marx no século 19. Nesta revisão e atualização do pensamento proposto pelo pensador alemão, o autor destaca que o mundo atual é construído a partir de uma nova cultura de massa, na qual as tecnologias da reprodução pautadas nos signos e nas imagens são os elementos ativos de todo o processo. No final da década de 1960, não podemos esquecer também as influências das idéias do também pensador francês, o situacionista Guy Debord, a partir do livro “A Sociedade do Espetáculo”, publicado em 1967, ao apontar que a forma assumida pelas mercadorias, e que substituiria todas as outras no processo de dominação ideológica, seriam as imagens.

É neste novo contexto, o mundo regido pela imagem e o incessante consumo delas, que se impõe a Baudrillard uma série de reflexões, revisões e atualização no pensamento proposto por Marx. Baudrillard principia da máxima do pensador germânico de que o econômico (infra-estrutura) é que determina todos os outros elementos sociais (superestrutura). O modo de produção é a base de todo o sistema. Onde o valor de uso das mercadorias é diretamente proporcional à utilidade e satisfação das necessidades dos indivíduos. O valor de uso constitui o “suporte material” do valor de troca. O valor de troca, subordinado ao valor de uso, estaria relacionado ao mercado, ou seja, a sua “forma de mercadoria”, por extensão é por assim dizer o seu “preço” enquanto mercadoria no mercado, em relação às outras mercadorias existentes, as quais também tiveram trabalho humano socialmente necessário para consumá-las.

A reavaliação crítica de Baudrillard parte do valor de uso para a criação de outros tipos de valores. Já não bastam os valores de uso e troca para mensurar os objetos (as mercadorias) em relação à nova realidade contemporânea. Existe algo, além disso, pois o objeto também tem o valor de símbolo, logo o objeto também possui valor de signo, pleno de sentido e significado. O mundo das trocas agora não somente acontece a partir de “permutas” meramente econômicas de mercadorias e manufaturas, mas também, e quase na sua totalidade, num “novo mundo” de trocas simbólicas, dominado por signos, imagens e representações. Cabe aqui ressaltar que, a partir das reflexões da semiologia e da semiótica, as imagens estão sempre em lugar das coisas e não nas coisas: esse detalhe caracteriza e reforça o seu caráter simbólico. Neste “novo mundo”, os meios de comunicação de massa, principalmente a televisão, são os elementos que fazem esta mediação e trocas de signos e símbolos. De maneira apocalíptica, a resistência, como aponta Baudrillard, parece estar somente num “ato de recusa” em participar deste sistema do mundo contemporâneo.

Quatro Lógicas Distintas - Para avançar a reflexão é pertinente observar a distinção feita por Baudrillard em relação aos objetos, sob o enfoque de quatro lógicas distintas: 1) A lógica das operações práticas e necessidades individuais (valor de uso); 2) A lógica do mercado (valor de troca); 3) A lógica das trocas simbólicas acontecidas no dia-a-dia (valor de símbolo) e 4) A lógica da representação, diferenciação e status (valor de signo). Um outro aspecto que deve ser ressaltado é esta palavra “status”, que é derivada do latim “statutum”, e se refere a “estatuto”, “sustentação”, “ficar de pé”, ou estar numa situação diante dos olhos do mundo e dos outros; num sentido mais amplo, o “statutum” seria uma espécie de “documento” que organiza os princípios de uma sociedade. Por extensão, “status” é considerado também um tipo de posição diferenciada e favorável numa determinada sociedade; uma consideração, um renome, um prestígio, uma posição que representa a maneira como nos sentimos em relação às outras pessoas, os quais também não deixam de significar como os outros se sentem em relação a nós. Logo, o “status social”, refere-se a um tipo de prestígio publicamente atribuído a posições e trabalhos específicos dentro da sociedade.

Na sociologia de Max Weber, determinados grupos sociais, seus estilos e padrões de vidas diferenciados pressupõem também um sistema de valores, crenças e consumos diferenciados. Todavia, na contemporaneidade, o que realmente importa é o “status social” relacionado ao prestígio atribuído à posição social. É algo semelhante à mesma matriz romana para “Estado”, para definir uma espécie de posição relativa de alguém na sociedade. Eis um elemento singular no novo conjunto de ideologias que diferencia e iguala ao mesmo tempo. Diferencia, pois existem poucos que detêm muito (por exemplo, os capitalistas, que vivem uma situação financeira favorável e controla a riqueza circulante), e iguala, porque também todos querem e procuram este status, o qual pode ou não ser pré-fabricado pelas ideologias dominantes (para contagiar os vários públicos-alvos, ávidos de consumo), partindo do pressuposto psicológico que todo ser humano também é movido pelo desejo e a procura de prestígio, status e diferenciação em relação aos demais. Não podemos esquecer que, no mundo atual, muitos trabalham de maneira ávida, não somente pelo dinheiro em si, a manutenção de suas famílias, etc., mas e principalmente por uma incontrolável vontade de ter status, ser conhecido, reconhecido, famoso, visível, consumado, ser lembrado como “imagem” de sucesso. Este é o reino da imagem em sua forma plena: a sua ostentação e o seu valor de status e prestígio. Adam Smith já preconizava que o prazer proporcionado pela riqueza reside em exibi-la aos outros.

De acordo com as teorias propostas por Baudrillard, as quatro lógicas apresentadas anteriormente equivaleriam às questões da utilidade, do mercado, do presente e do status. Reitero que, no livro “For a Critique of the Political Economy of the Sign”, ele enumera estas lógicas como: primeiro, o objeto torna-se um instrumento; na segunda, um bem; na terceira, um símbolo; e na quarta, um signo. Sendo as mercadorias (objetos) tudo ao mesmo tempo, ou seja, contêm em si todas as quatro lógicas apresentadas (aqui coexistem as influências de Saussure e os estruturalistas – Jakobson, Althusser, Benveniste e até Bourdieu, etc.). Renovo que além do objeto possuir um valor de uso, a base de todos os outros valores, valor de troca e valor de símbolo, ele possui também uma capacidade de representação e significar status (valor de signo).

Em outras palavras, estes objetos são produzidos não somente para saciar uma necessidade humana (o início de tudo), muito mais: para diferenciar e significar um status, prestígio, um estilo de vida, uma ideologia, incorporando-se aí as suas funções psicológicas (o reino das escolhas do indivíduo) e culturais (o reino da sociedade). Neste estágio, as marcas, imagens e grifes valem mais que as próprias mercadorias. Transformam-se em novos signos, sendo este o novo fator de diferenciação, status e valorização que distingue todo o sistema de trocas econômicas. Em termos ideológicos, o discurso assume também outros rumos. Para Baudrillard esta nova sociedade consumista é também a sociedade do discurso da denúncia do próprio consumo.

Um Novo Código - Baudrillard aponta também que esta nova sociedade possui um novo código. Código entendido a partir do livro “Informação, Linguagem, Comunicação” de Décio Pignatari, como a própria língua, ou um novo sistema de símbolos que convencionada, representa e transmite uma mensagem entre uma fonte (emissor) e um destino (receptor). Os novos meios de comunicação, dentro desta nova sociedade, estabelecem “ligação direta” consigo mesmo, e põem em funcionamento um novo sistema de símbolos, o elemento vital que perfaz uma nova economia política, pautada na troca de valores simbólicos e distribuição, que são atualizadas de forma permanente pelos seus vários discursos, sujeitos a algumas interrogações. Entretanto, fechados, pela sua precisão, busca de perfeição e a reivindicação de um “efeito de realidade” advinda das imagens produzidas, perfazendo um cerco bem fortalecido, um bunker, alheio e “inimigo direto” de toda e qualquer crítica. Desta maneira, são os símbolos formados e criados, principalmente pelas imagens, que põem em funcionamento um novo valor de troca entre as pessoas em seus diálogos diários. Eis o princípio de uma novíssima construção social da realidade consubstanciada pela troca mediática, e não somente pelo mundo da vida real e natural.

Pois bem, vamos dizer também que esta nova sociedade possui uma nova linguagem, a partir deste novo código. E este novo código é híbrido. Podemos chamá-lo de código com informações e natureza digital-analógico. Somatória de termos e quantidades do digital: constituída por dígitos, unidades que se manifestam separadamente, como o alfabeto, sistema numérico, notas musicais, etc., como observa e destaca Pignatari, “Todo tipo de cálculo que implique em contagem é digital”, mais as mensagens do tipo analógico: os gráficos, as régua de cálculos, matrizes, etc. A amálgama e absorção das características do sistema analógico pelo digital, conduzindo a criação de computadores e sistemas híbridos mais potentes e modernos, aumentaram a velocidade da informação, permitindo uma visão “mais elaborada” em seu conjunto.

Nesta fusão dos sistemas de códigos, sabemos que o analógico está mais próximo do mundo físico que do mundo mental. O sistema analógico contém em si (de forma implícita) a idéia de modelos, de mediação, mensuração, imitação e sistemas combinatórios, aproximando-se do simulacro, algo criado e controlável, repartidos em unidades do sistema digital. Para Baudrillard este novo código está relacionado com o código binário do DNA, a tecnologia da informática, as imagens bidimensionais e digitais da televisão, a telefonia moderna (em suas várias bandas e a internet) e as inovações e gravações do áudio. Em suma, este novo código é a tecnologia da informação. Nesta fase, o código supera a era do signo lingüístico. Pois, a sua reprodução é de outra ordem, não diretamente do signo enquanto representação, e sim do novo código mediático, que já é a cópia da cópia, apagando aí todos os aspectos do original (a realidade).

Exemplos deste estágio são a realidade virtual, o holograma e as comunicações globais que utilizam as fibras óticas. Aqui, a infração ao código é a própria simulação. É o estágio além da fronteira da realidade, e, sua conseqüência é o total desaparecimento do real. A origem das coisas não parte de sua gênese (a própria realidade natural), mas sim através de combinações, fórmulas, gráficos, sinais codificados e matrizes de números, apagando o limite dos seus opostos e antônimos. Baudrillard observa que vivemos nesta era do novo código, a qual traz as suas conseqüências nefastas nas mudanças rápidas em suas formas simbólicas e materiais, amparadas cada vez num mundo dominado e manipulado pelo exagero das imagens apresentadas pelas agendas e ilhas de edições da mídia.

Transestética - Após os anos de 1980, Baudrillard assume uma concepção mais radical, a partir das conseqüências da difusão do novo código nas sociedades modernas contemporâneas. Neste momento e situação, relembramos que, o código para Baudrillard já está relacionado a todo o sistema bidimensional da computadorização e digitalização existente nos establishments dos países mais desenvolvidos, o qual permite uma perfeita reprodução do objeto ou situação acontecida. Desta maneira acontece o que ele chama de “infração do código”, viabilizando ultrapassar as barreiras do real: eis o princípio da hiper-realidade.

Baudrillard sustenta que a contínua produção das mercadorias sociais, mais precisamente produção de imagens sociais ou signos (as novas mercadorias), produz e reproduz uma economia política não mais e somente de mercadorias (manufaturas), e sim uma economia política do signo, sendo ele o elemento que operacionaliza todas as trocas sociais. Logo, todo o processo de produção, distribuição e manipulação dos signos produzidos em geral, como automóveis, imagens das pessoas, presidentes, artistas, marcas, etc., instiga a formação de um novo tipo de opinião pública. Nesta nova etapa da Indústria Cultural, toda ela operacionalizada pelo significante, não existe mais barreiras referenciais em relação ao signo.

Segundo Baudrillard, no livro Tela Total: mitos-ironias da era do virtual e da imagem, “O significado e o referente foram abolidos para o único proveito do jogo de significantes, de uma formalização generalizada na qual o código já não se refere a nenhuma ‘realidade’ subjetiva ou objetiva, mas à sua própria lógica”. Ocorrendo uma espécie de substituição, dissolução e indistinção do que seja o Verdadeiro e o Falso: a tecnologia dos meios de comunicação de massa não consegue mais reproduzir uma realidade pré-existente, ao contrário, produz o real.

A contemporaneidade é um produto das inter-relações de todas as mídias: a televisão, o vídeo, o cinema, o DVD, a música, a telefonia, o rádio, os jornais e revistas impressas, a fotografia, a internet, o plasma, etc. A produção de sentidos já não passa pelo olhar humano, a própria câmera de televisão incumbe por si só de fazer o olhar. Parecendo que todos os acontecimentos do mundo são dirigidos a elas. Cabendo então a elas (as câmeras de TVs) sua função primordial: produzir as imagens, o espetáculo por inteiro, ocasionando uma inversão de valores, uma mistura sem igual no reino da representação.

Baudrillard apresenta-nos um argumento convincente do seu efeito, em A Ilusão Vital: “Substituímos a transmutação dos valores por sua comutação, sua transfiguração recíproca por sua indiferença mútua e sua confusão. No fundo, sua transdesvalorização. A conjuntura contemporânea de reabilitação de todos os valores e de sua comutação indiferente é a pior de todas. Até mesmo a distinção do útil e do inútil não pode mais ser colocada, devido ao excesso de funcionalidade que leva à sua contaminação – é o fim do valor de uso. O verdadeiro se dilui frente ao mais verdadeiro – é o reinado da simulação. O falso é absorvido pelo demasiado falso para ser falso – é o fim da ilusão estética. E a perda do mal é ainda mais dolorosa que a do bem, a do falso mais dolorosa ainda que a do verdadeiro”. Seria uma situação transestética, de implosão, na qual a arte perde o seu poder como fenômeno próprio, seu poder de reação, suas normas e juízos de valores.

Neste contexto, a reabilitação do valor esbarra na sua própria estratégia fatal, pois ele vai além de si mesmo. Coexistindo um só caminho, como aponta Baudrillard, no mesmo livro citado anteriormente: “Só podemos opor ao destino do valor o destino da forma. Todas as formas se degradaram sucessivamente em valores, tal como as diversas formas de energia se degradam sucessivamente em calor. Degradação na estética como valor, na moral como valor, na ideologia como valor. Mas os próprios valores se degradam, terminando por se confundirem no seio de um universo fractal, aleatório e estatístico, na indiferença e na equivalência, segundo uma aceleração perpétua semelhante ao movimento browniano das moléculas. Perdemos assim o valor de uso; depois o bom e velho valor de troca volatilizado pela especulação, e estamos a caminho de perder até mesmo o valor-signo em proveito de uma sinalética indefinida, perder até mesmo toda uma lógica diferencial do signo para uma circulação logicial indiferenciada. Mesmo o signo não é mais o que era. Entropia física, entropia metafísica: todo valor é colocado sob o signo da entropia, como toda diferença sob o signo da indiferença”.

O novo código, que já opera por todo o mundo, inclusive nos países menos desenvolvidos, é o fator contaminante da forma. O seu desdobramento: “À Hipótese desencantada do valor, opõe-se então a hipótese encantada da forma. Pois se todos os valores parecem em vias de desaparição devido a um processo irresistível, as formas, pelo menos em sonho, parecem indestrutíveis. E a armadilha está em querer salvar os valores a qualquer preço, quando a perda fundamental seria a das formas”.

* José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, pesquisador e escritor. Autor de Pavios Curtos (anomelivros, 2004). Participa da antologia O Achamento de Portugal (anomelivros, 2005). Tem dois livros no prelo. josealoise@terra.com.br

Tuesday, May 01, 2007

HILDA HILST: "Em 50 anos serei considerada genial"

Às vésperas dos 70 anos, escritora diz que a maturidade dá a certeza que não compreendemos nada.


Nascida em Jaú, em 1930, Hilda Hilst estreou em 1950, com o volume de poemas “Presságio”. Desde então publicou mais de 30 livros de poesia, narrativa e teatro. Hoje a escritora de “Tu não te moves de ti” garante que parou de escrever por ter esgotado em sua obra a necessidade “imperiosa” de se expressar que, segundo ela, levou à literatura. A poeta, que respondeu às perguntas por escrito, discorre sobre vários temas numa linguagem repleta de reticências _ e por isso completamente próxima à sua obra. As respostas de Hilda Hilst são quase fábulas, falas um tanto comovidas com a existência. “Não sei se a minha vida daria boa poesia”, duvida ela, para quem a poesia, desde Shakespeare, jamais mudou nada no mundo.


1. Hilda, você escreve para responder perguntas que às vezes não têm respostas?

- Na maior parte da vezes sim. No meu texto Qadós, por exemplo, isso se re­vela mais insistentemente. O personagem, desde criança, já perturbava os pais por ser acentuada­mente perguntante e recebia os apelidos de Qadós-pergunta-coisa, Qa­dós-disseca-tripa. Depois, já adulto, continuou se perguntando:

“(Qadós)... quando comecei a perguntar de manhãzinha:

O que me dizes do administrador do Cosmos?

E o administrador sabe de que maneira deve ser administrado para che­gar com sabedoria e perplexidade ao seu último estágio?

E se ele, o administrado sabe disso, que importância tem o admi­nistra­dor?

Fui indo aos solavancos muitas horas e terminei com esta jóia: o meu ser pergunta é um estado imutável?”

Mas escrevo principalmente pela necessidade imperiosa de me expressar.

2. Vale a pena escrever poesia? Não seria melhor transformar a vida em poesia do que fazer poesia com a vida?

- Não sei o que você quer dizer com “valer a pena”. Quer dizer fama, prestígio, di­nheiro? Palavras simples podem significar coisas complexas. Heidegger escre­veu um verdadeiro tratado sobre “O que é uma coisa?”. Poesia é a necessidade de se expressar. Não sei se a minha vida daria boa poesia. Sei que antes de tudo, importa poder se ex­pressar.

3. A poesia é capaz de transformar o mundo?

- Não acho que seja. Mesmo um grande poeta não pode transformar o mundo. Shakespeare era deslumbrante mas não transformou o mundo.

4. Hoje em dia é possível surgir um poeta que tenha a voz do povo ou a poesia nes­tes tempos pós-modernos é apenas dos poetas so­litários?

- No Brasil, a voz do povo é o futebol, a música, a dança. Se “voz do povo é voz de Deus” talvez Deus goste muito de dançar. Sei muito pouco sobre Deus. Talvez ele passe horas falando ao telefone e por isso tudo está como está. Mas, mesmo solitário, o poeta pode ter várias vozes. Os grandes poetas são sempre solitários e falam muito so­bre a ausência.

5. Octávio Paz diz que “a história da poesia moderna é a do contí­nuo dilaceramento do poeta, dividido entre a moderna concepção do mundo e a presença às vezes intolerável da inspiração.”

- A inspiração existe, embora João Cabral não acredite. Ela vem subitamente e pode dar até febre física. É magnífico receber algumas vezes a inspiração. É um dom divino com o qual somos agraciados.

6. Ainda hoje nascem poetas simbolistas e saudosistas, sonetei­ros e bordadeiras. Se pelo menos fossem repentistas...

- Se você se refere a “bordadeiras” como aquelas mulheres que durante a revolu­ção francesa assistiam aos julgamentos bordando meias e eram deno­minadas de tricoteuses, isso é terrível, pode ser medonho. Acho que sem­pre é bom quando nasce um bom po­eta, seja repentista ou não. Mas é ne­cessário tentar inovar.

7. Poeta é aquele que sobrevoa o abismo?

- Sim. Sobrevoei muitos mas, nunca tive coragem de me lançar sobre eles. Sem­pre tive uma boa dose de auto-preservação.

8. Há algum sentido, se é que há algum sentido, nas palavras e fra­ses do poema?

- Aquele que se expressa, sempre tenta fazer algum sentido. Não um sen­tido convencional, muito menos na poesia. Ele não fala sobre o nada e para nada.

9. O ritmo é o núcleo da poesia?

- Não só. É um conjunto. O ritmo, a forma, o fundo.

10. Valéry comparou a poesia com a dança e a prosa com a mar­cha...

- Minha prosa não é uma marcha, é sempre uma prosa poética. Não acredito nessa di­ferença.

11. A palavra poética é a revelação da própria imagem? Um po­ema só tem sentido a partir de suas imagens?

- Um poema não tem sentido apenas a partir de imagens, mesmo as ima­gens tendo grande importância. Nos meus versos “Como se te perdesse assim te quero. / Como se não te visse (favas douradas / Sob um amarelo) assim te apreendo brusco / Inamoví­vel, e te respiro inteiro / Um arco-íris de ar em águas profundas.” existem lindas ima­gens mas, não apenas isso.

12. Falemos da crítica. Os críticos mandarins ignoram a sua po­esia ou a tra­tam como se você fosse uma poeta apenas erótica. Alguns a classificam como uma poeta por­nográ­fica...

- Os críticos mandarins que leram minha poesia não a ignoram e sabem que não posso ser classificada de poeta erótica. Anatol Rosenfeld, Jorge de Sena, Antônio Hou­aiss falaram muito bem sobre meu trabalho. Dos meus 22 livros de poemas, apenas um, “As Bufólicas” pode ser considerado pornográfico mas, eu sei que ele tem principal­mente humor. E dos meus 11 de prosa, apenas 3 podem ser conside­rados pornográficos, mesmo não o sendo exclusivamente. Wilson Martins usou er­roneamente a palavra “bordelesca” ao se referir ao meu livro “Do Desejo” mas ele não o deve ter lido. Po­rém, estou em boa companhia. Du Boccage também sofreu esse tipo de confusão, mesmo tendo, na quase totalidade, uma obra lírica, infelizmente desconhecida pela grande maioria. D. H. Lawrence comentou muito bem o que é pornografia, em 1925 no livro “Pornografia e Obscenidade”. Não sei por que ainda fazem tanta confusão hoje em dia. Nos jornais, adoram colocar tí­tu­los chamativos. A “Folha de São Paulo”, na rese­nha do meu livro “Estar Sendo-Ter Sido”, usou o título “Uma Jeremi­ada Pornográfica”, deixando claro que não entenderam do que se tratava. No jornal francês “Liberation”, Eric Loret fez um comen­tário brilhante sobre “A Obscena Senhora D”, comparando-me a Ba­taille. Alguém, na redação, colocou o título “La co­chonne Hilsterique”. Acho que nem na França me entenderam.

13. Nietzsche diz que “é por nossas virtudes que somos bem puni­dos”.

- Não concordo inteiramente. Acho que quase ninguém lê Nietzsche, que foi uma pessoa deslumbrante. Um dia ele se comoveu tanto vendo um ca­valo sendo açoi­tado que começou a chorar, abraçou e agarrou a cabeça do cavalo, caiu no chão e acabou sendo levado para o hospício.

14. A leitura crítica deveria ser uma interpretação da beleza como um objeto de saber...

- Você conhece a beleza? A idéia da beleza é muito difícil. Você pode ter a ilusão da beleza que você já viu um dia mas, não sabe onde. Alguns místicos contempla­ram a beleza em Deus, durante os seus êxtases. Santa Angela de Foligno, que vi­veu no século XIII, disse ter visto a beleza de Deus numa visão. Mas, acrescen­tou que “Ali não havia nem sombra de amor”. Isso me deixou tão impressionada que comprei sua biografia. Tal­vez nós todos, um dia, tenhamos visto o rosto de Deus e por isso evocamos a beleza.

15. Você parou de escrever por causa da crítica, ou das editoras que não di­vulgam os poetas, ou ainda porque os leitores estão surdos para a poesia?

- Parei de escrever quando senti que tinha dito tudo o que eu sabia e da melhor forma que fui capaz. Fiz o esforço maior que pude para me ex­pressar. Não adianta mais dar explicações nem entrevis­tas. Se não entenderam, eu não sei dizer de outra forma. Se me vi­esse al­guma coisa com a força que me vinha, voltaria a escrever, seja prosa ou po­esia. Mas, não tem mais vindo. À medida que vamos envelhecendo, descobrimos que não compreendemos nada.

16. Gide diz que “todas as coisas já estão ditas mas, como nin­guém escuta, é pre­ciso re­começar sempre”.

- Blake, Bataille, Rimbaud, Baudelaire, Beckett, Henry Miller, tan­tas outras pessoas deslumbrantes já dis­se­ram. Eu sinto que já disse tudo o que devia. Acho que os novos artistas, os novos talen­tos, devem recomeçar sem­pre sim.

17. Ler poemas em voz alta irrita os deuses aposentados...

- Se são deuses, nunca são aposentados. É preciso saber ler muito bem a poesia. Pa­blo Neruda, Drummond, não sabiam ler bem seus poemas. Ou­vindo uma gra­vação de Cecília Meirelles declamando seus poemas fiquei surpresa. Eu sempre soube ler poesia muito bem, tanto a minha própria como a dos outros. Quando eu tinha 19 anos, Oswaldo de Andrade me fez ler o poema “Une Charogne” do “Flores do Mal”, de Baudelaire, em voz alta.

18. Você concorda que, geralmente, os poetas são aplaudidos por­que traba­lham em fa­vor da língua comum e não porque inventam uma forma origi­nal de linguagem?

- Não da língua comum. Quando você escreve poesia ou prosa, tua von­tade é sempre dar um passo além. Como já teve Shakespeare, Rimbaud, Joyce e tantos outros maravi­lhosos e geniais, é muito difícil dar esse passo, ser original.

19. Falemos do tempo. A eternidade está no presente?

- Os antropólogos dizem que para todos os homens a ação onírica une o passado e o futuro no presente, e nos sonhos o espaço inexiste. O Zen questiona muito isso do Ali e Agora, a eternidade estaria no aqui e agora. Mas não sabemos o que é Eternidade.

20. A morte não tem importância, desde que haja alguma coisa do outro lado...

- Ela não tem importância porque ela é inevitável.

21. Nunca somos geniais quando morremos...

- Podemos ser muito geniais ao morrer. As últimas palavras de Kafka foram “Para o poço, para o fundo do poço filho de reis”. Rimbaud despediu-se da sua irmã, refe­rindo-se ao dia seguinte da sua morte, dizendo “Eu estarei embaixo da terra e tu caminharás ao sol”. Eu apenas diria “Que maçada”. Daqui há 50 anos serei conside­rada genial. Principalmente quando morre­mos podemos ser geniais.

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2 poemas inéditos

I

Ai, que translúcido Te fazes

Que maravilha Teus ares

Ai, bem-querer de mim!

Tu

Nos Teus palanquins do alto

Olhando-me tão ferida

Tão mula velha

Tão carne de despedida

Tão ossos

Tão tudo que regozija

Tua garganta de brisa!

Vem. Engole-me inteira

No Teu exílio de esteiras!

******

II

No Teu leito de lírios

Lambe-me o pêlo

Agora reluzente

De remansos de zelo.

Devolve-me a cabeça

(Pois mula que sou

E deitada com o Pai

Isso talvez se faça ou aconteça)

Rodeia-a de rosas

Como os humanos fazem

À guisa de louros

Com os seus mais preclaros.

Barganha-me nas feiras

Em proveito Teu:

Mula que se fez musa

(Porque deitou com Deus)

Na grande noite escura

Do Teu riso.


poesia

Presságio - Revista dos Tribunais, 1950

Balada de Alzira – Edições Alarico, 1951

Balada do festival – Jornal de Letras, 1955

Roteiro do silêncio – Anhambi, 1959

Trovas de muito amor para um amado senhor-

Anhambi, 1959; Massao Ohno, 1961

Ode fragmentária - Anhambi, 1961

Sete cantos do poeta para o anjo - Masso Ohno, 1962

Poesia (1959-1967) – Editora Sal, 1967

Júbilo, memória, noviciato da paixão - Massao Ohno, 1974

Poesia (1959-1979) – Quíron, 1980

Da morte. Odes mínimas – Massao Ohno,

Roswitha Kempf, 1980

Cantares de perda e predileção – Massao Ohno/

Lídia Pires e Albuquerque Editores, 1980

Poemas malditos, gozosos e devotos - Massao Ohno/

Ismael Guarneli Editores, 1984

Sobre a tua grande face - Massao Ohno, 1986

Amavisse- Massao Ohno, 1989

Alcoólicas – Maison de vins, 1990

Bufólicas – Massao Ohno, 1992

Do desejo – Pontes, 1992

Cantares do sem nome e de partidas - Massao Ohno, 1995

Na bibliografia de Hilda, acrescentar

Do Amor --- SP: Edith Arnhold- Massao Ohno Editor, 1999

teatro (inédito)

A possessa, 1967

O rato no muro, 1967

O visitante, 1968

Auto da Barca de Camiri

Aves da noite, 1968

O verdugo, 1969

A morte do patriarca, 1969

prosa

Fluxo-floema – Perspectiva, 1970

Qadós – Edart, 1973

Ficções – Quíron, 1977

Tu não te moves de ti – Cultura, 1980

A obscena senhora D – Massao Ohno, 1982

Com meus olhos de cão e outras novelas –

Brasiliense, 1986

O caderno rosa de Lory Lambi – Massao Ohno, 1990

Contos d’escárnio/Textos grotescos – Siciliano, 1990

Cartas de um sedutor – Paulicéia, 1991

Rútilo nada – Pontes, 1993

Estar sendo – Ter sido – Nankin, 1997

Cascos e carícias – Nankin, 1999

Entrevista publicada em 25 de dezembro de 1999, caderno “Prosa & Verso”; Jornal “O Globo”