Monday, May 28, 2007

Minha Leitura: Dom Casmurro

A capa da coleção Grandes Leituras, da FTD: olhos de ressaca?

Capitu traiu ou não traiu Bentinho? A pergunta vem gerando polêmica desde que Dom Casmurro foi publicado, em 1900, mas não me parece, nem de longe, a questão mais relevante dentro do romance. E não somente levando em conta o retrato irônico e cáustico que Machado de Assis traça da classe abastada do Rio de Janeiro no fim do século XIX, entre outras várias reflexões que este levanta sobre a situação do ser humano no mundo, da vida que é uma ópera e etc...

Essa polêmica, porém, talvez seja fruto de uma das contribuições mais interessantes que Machado de Assis deu para a literatura brasileira: trata-se da descredibilização do narrador. Isso porque fica mais que claro pelo modo como a história é contada que tudo se trata do ponto de vista de Bentinho, que mais do que relatar os fatos, analisa os acontecimentos e as pessoas, de seus comportamentos aos seus pequenos gestos. Vem daí, provavelmente, o pouco apego do narrador pelas descrições minunciosas, se concentrando justamente em dissecar esses pequenos gestos, os detalhes. E é aí que aparecem os olhos que tragam tudo ao seu redor, os famosos olhos de ressaca de Capitu; o olhar de censura que Bentinho dá a sua tia quando esta maldiz sua amada ainda criança; a voz e o jeito de rir de Escobar, que se reproduzem no filho que Bentinho tem com Capitu, o que praticamente assinala a suspeita de sua paternidade, entre outros pequenos traços bastante importantes na definição dos personagens da obra de Machado.

Da mesma forma, o jogo intrincado em que ele prepara essas suspeitas é construído basicamente de pequenas sutilezas, espalhando indícios relevantes tanto a favor quanto contra a lealdade de Capitu. Qualquer resposta para esse enigma acaba sendo dada pelo leitor pelo seu próprio risco. Ela, aliás, possivelmente revela mais sobre os valores e predisposições do leitor do que propriamente as do autor, Machado de Assis, que não se pode confundir com o narrador, Bentinho. Este fez também uma escolha pelo seu próprio risco, jogando fora um casamento feliz se baseando apenas em pequenos ciúmes e na suposta semelhança de seu filho com seu amigo Escobar. E o que essa falta de consistência revela é justamente um dos aspectos que me parecem pouco explorados nas leituras feitas sobre a obra, que é o profundo machismo da figura central do romance. Bentinho não consegue lidar sequer com a suspeita de que sua companheira tenha lhe traído com seu melhor amigo, colocando toda a sua vida a ruir por causa dessa dúvida.

Ora, mesmo que Capitu tivesse traído o marido, o comportamento deste seria extremamente questionável (e é melhor não ler isso aqui, se você não leu o livro), afinal não é nada razoável quase tentar matar o próprio filho, e pensar em matar a esposa e cometer suicídio ainda por cima (pode voltar a ler). Além de machista, o personagem se insere num contexto extremamente patriarcal, e é assim que ele mesmo se configura. Prova disso(aqui é melhor não ler novamente) é que ele não pensa duas vezes em trocar de lugar com um escravo para cumprir a promessa da mãe de ter um filho ordenado padre, livrando-se do impecilho para seu relacionamento com Capitu, o que toma boa parte do livro.

Outro sintoma desse esnobismo é a ocasião do enterro do ‘’amigo’’ pobre de Bentinho, em que ele não tem permissão da família para ir por acreditarem que não o ‘’evento’’ não era tão digno de sua presença. Isso sem falar no ambicioso José Dias, que vive de puxar o saco da família do protagonista, o que inicialmente irrita Bentinho, mas acaba ele se tornando justamente um de seus únicos companheiros no final da vida. Interessante notar também que quase todos os personagens da trama são pessoas idosas mais ou menos amarguradas, que são justamente a família do personagem principal: sua mãe Dona Glória, o Padre Cabral, Tio Cosme, Tia Justina e José Dias. Ah, claro, sem esquecer do Dom Casmurro, apelido que Bento Santiago ganha no final da vida pelos seus (poucos) amigos:

‘’Não consultes dicionários, Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo" (Cap. I).

E não era realmente ele quase fidalgo? Tanto que via como virtude magnífica que Escobar conseguisse fazer o cálculo de cabeça da soma de todos os alugueis que sua mãe possuía... De qualquer forma, boa parte da trama se concentra na infância e adolescência do personagem, períodos em que este se apresenta bem mais carismático e divertido, posto que cheio relatos de sua imaginação e devaneios, característica que faz lembrar bastante Brás Cubas. Aliás, muita coisa faz lembrar o Brás, que foi o único livro do autor que li no colégio, e que pretendo reler em breve...

Ler Dom Casmurro assim, falando nisso, fora da obrigação do colégio, se revela algo muito mais interessante e prazeroso. E não só porque toda obrigação priva em grande parte o prazer da leitura, mas principalmente porque, como disse uma amiga, seria impossível entender toda aquela análise irônica e complicada que o escritor faz da sociedade burguesa do final do século XIX com 15 anos de idade, que é quando normalmente a gente tem que lê-lo na escola. Mas isso é assunto já pra outra discussão. O que eu posso dizer é que é um livro interessantíssimo, cheio de reflexões e tiradas espirituosas, com um ritmo bastante ágil, ainda mais para um livro do século trazado. Se você ainda não leu esse clássico, é uma leitura mais do que recomendável. Se teve que ler por obrigação no colégio, aí sim, acredito, é que vale apena ler assim, a seu bel-prazer.

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