Monday, May 21, 2007

Em defesa do "Caderno rosa de Lori Lamby"

"Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas." Oscar Wilde

"E quem olha, se fode." Lori Lamby

Houve aqui em Fortaleza uma apresentação de Lori Lamby, adaptação do polêmico livro de Hilda Hilst. Não fui, porque não sabia e, talvez, mesmo sabendo, não pudesse ir. Portanto, não sei dizer, nem é a intenção, se a apresentação foi boa, ruim, ou mais ou menos. Sei que foi por demais polêmico, merecendo inclusive protestos inflamados de pessoas da platéia.

Para quem ainda não leu, é bom que saiba que o livro é supostamente (nunca confie no narrador) um diário das aventuras sexuais de uma menina de 8 anos, de como ela gosta da coisa toda, especialmente pelo dinheiro. Supostamente era a criança levada a fazer isso, não contra a sua vontade, pelos próprios pais, que, por sinal, não são pobres.

Atriz Iara Jamra interpretando Lori no cinema.

É verdade que o centro do problema foi que a organização colocou CENSURA LIVRE, onde obviamente não há. Desleixo. Mas o protesto mais incisivo de uma pessoa da platéia, pelo que me disseram, foi de uma senhora que trabalhava em algum órgão (não lembro bem) contra a exploração sexual de crianças e adolescentes. Sua crítica não era tanto por ter tido que esconder, com muita razão, seus filhos daquela peça ADULTA, mas porque o próprio trabalho de Hilda Hilst estaria profanando uma questão seríssima, da prostituição infantil, transformando em chacota.

Felizmente, esta senhora está totalmente equivocada.

O primeiro convidado a fazer as ilustrações do livro recusou o trabalho. Como desenhar tais situações (uma menina de 8 anos que gosta de prostitui-se) impunemente? Quem enfrentou a situação foi ninguém menos que o famoso e corajoso cartunista Millor Fernandes, escolha, na minha opinião, perfeita. “Dois velhos que perderam a vergonha”. Foi o que disseram de Millor e Hilda. Não se precisa dizer nada: já haviam caído na armadilha do livro. Não vou revelar, pra que não leu, os esclarecimentos e revelações que o livro guarda, mas não posso deixar de comentar o que se perde da mensagem do livro com nossos preconceitos, como já tentei fazer no dia da roda de leitura em que ouvimos falar desse caso.

Primeiro, e na minha opinião, o livro fala de tudo, menos de uma menina de 8 anos que se prostitui. O tema do livro não é prostituição infantil, que pode ser um tema apenas tangencial. A prostituição de Lori é um elemento de absurdo, que sempre serve, como nos quadros surrealistas, para retirar os símbolos do lugar onde os colocamos por mero comodismo. Mexe com a mente, com nossos sentimentos de ódio contra os exploradores sexuais, com nossa visão de criança, com nossa visão de sexo, com nossa visão de nós mesmos. E se pergunta, para tudo isso, novos significados, novas reflexões.

Mas, como disse, esse é só o efeito inicial a fim de abrir portas a outros sentidos e universos. A metalinguagem, para mim, é o principal foco do livro. O pai de Lori é um escritor. Como a Hilda Hilst em seu primeiro período criativo (vamos dizer assim), ele escrevia sobre os temas mais profundos sem tocar no corpo grotesco, no interior dos pudores, nem mesmo quando esses intestinos tocavam a alma ou Deus. Não que não houvesse sensualidade, mas sempre as grandes palavras, as palavras eternas e sutis. Era hora de mudar. Mas porque? Porque não dava dinheiro. O editor do pai de Lori queria que ele escrevesse sacanagens, “bandalheiras”, para que fosse bem visto e bem comprado.

O pai de Lori, como a própria Hilda, defendia um tipo de literatura que era impossível tornar-se porcaria e pornografia, mesmo que a autora, em alguns momentos, reclame que assim seja considerada. Por isso, sua produção é um híbrido desconcertante que a liga a uma tradição do grotesco em que os buracos obscenos são caminhos para Deus.

Lori Lamby, como o pai e como Hilda Hilst, é também uma escritora. Não é uma prostituta. LL é, acredito, o ângulo pelo qual HH quis fotografar o problema da literatura em relação à falsa dicotomia entre corpo e alma e à verdadeira dicotomia entre o respeito ao nosso corpo/alma e a banalidade, a barbárie, a “bandalheira”. Um livro como “O caderno rosa de Lori Lamby”, por isso mesmo, não pode ser a favor da exploração sexual de crianças e adolescentes, porque o que é pedido em sua literatura é a elevação do homem de animal oco para animal espiritual.

Compare a capa da edição italiana (acima) com o desenho de Lori Lamby feito pela própria Hilda Hilst.

E porque então Lori Lamby escreve em seu caderninho que gosta tão escandalosamente de sexo com homens mais velhos? Porque ela diz que adora o dinheiro que vem do sexo? Por que se a proposta do livro não é a mesma da obra de Hilda? Ora, basta ler a própria Lori. Ela, escritora que é, não escreve só: está sempre a conversar com todo o mundo a sua volta. E eis a realidade, dita por um dos supostos exploradores de Lori: todos somos nojentos, asquerosos.

Lori reproduz fetiches baratos e vendidos de filmes pornôs (por exemplo, o “cenário de praia”), a paixão pelo dinheiro dos homens (que a faz inteligentemente ligar dinheiro e sexo), dialoga com os textos do próprio pai (que escreve o seu trabalho, que é “o caderno negro”. Ele o acha tão horroroso e depravado que o coloca em uma estante que chama de “bosta”)... Observa atentamente tudo do jogo da realidade.

Ao mesmo tempo que gostava da atenção da mídia e da repercussão de seus livros "obscenos", ssentia falta que lessem sua grande obra lírica. Lírica em sentido estrito.

Por deglutir o mundo dessa forma e cuspi-lo sem sistemas, sem pudores e sem nem saber direito do que falava, Lori Lamby acha a fórmula que estamos, literatos ou não, fadados a repetir: estamos descobrindo esse nosso mundo quando ele está dominado por uma profunda crise moral e só podemos fazer contra ela a partir dela própria. E, conclusão minha, elege o corpo para chegar à alma, não o contrário. A epígrafe do livro, que fiz epígrafe deste texto também, não diz coisa muito diferente.

Mais ilustrações, fotos, informações, na mesma boa fonte de onde eu tirei esta exposição virtual.

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