Friday, May 04, 2007

JEAN BAUDRILLARD, a simulação desencantada

POR JOSÉ ALOISE BAHIA*


Antes de iniciar a leitura, quero compartilhar alguns detalhes com os leitores da revista Verbo 21. Primeiro, e de maneira proposital, trata-se de um texto teórico e longo, que será publicado em 3 partes. Com várias citações bibliográficas, sem as quais seria difícil construir aquilo que chamo de “Uma Breve introdução à Economia Política do Signo em Jean Baudrillard”. Mas, com paciência e determinação, acredito, alguns chegarão ao final. Ou, mandem logo para a impressora, pois ainda existem pessoas que gostam de papel. Para amaciar o tempo e levá-los adiante, eu pego carona nas palavras de Hygina Moreira Bruzzi, uma das maiores estudiosas no Brasil da filosofia, sociologia, poesia, fotografia, virtualidade e a “pós-modernidade” em Baudrillard: “A letra não mata o espírito. A letra dá à luz o prazer da leitura”.

Segundo, além de homenagear o pensador que inspirou o filme Matrix - mesmo ele não concordando com a idéia -, a proposta é ir um pouco além e resgatar parte das idéias de um ser-humano (gosto mais dessa palavra que expressa um traço de união) que tematizou de modo radical a questão do simulacro na sociedade atual. Os parágrafos a seguir, com várias modificações, estão presentes num dos capítulos teóricos de um livro que estou trabalhando já algum tempo sobre um programa da TV brasileira, o Linha Direta, da Rede Globo de Televisão. E, por último, despertar a reflexão, convidar as pessoas para conhecer o universo e o legado de um autor que escreveu mais de 50 livros, que foi contestado e massacrado dentro da própria roda acadêmica e mídia, e demonstrou uma impressionante capacidade em diagnosticar o panorama da sociedade contemporânea, com seu “melancólico” aparato tecnoestrutural, que “estimula” os menos avisados à condição do delírio, à desinformação, à deformação, à satisfação e o padrão consumista, o vazio e à simulação desencantada.

Jean Baudrillard nasceu em 20 de julho de 1929 em Reims, França, numa família de trabalhadores rurais. Faleceu agora em março de 2007 com 77 anos. Começou a lecionar em 1966 na Universidade de Paris X-Nanterre, onde, juntamente com Henri Lefebvre, completou sua tese de sociologia. Em 1968, publica o livro “O sistema dos Objetos”, influenciado por outro - “Sistema da Moda”, de Roland Barthes. Em 1969, já inserido no grupo de Barthes (Ecole des Hautes Etudes) escreve um importante artigo também sobre a questão dos objetos e a função do signo na revista “Communications”. Seguem-se outros livros: “A Sociedade de Consumo” (1970), “For a Political Economy of the Sign” (1972), “O Espelho da Produção” (1973) e “Seduction” (1979). Rompe com o marxismo já no começo da década de 1970, tornando-se no meio acadêmico, intelectual e político um “ideológico inclassificável”, principalmente depois de publicar “A Transparência do Mal: ensaios sobre os fenômenos extremos”.

Após a metade da década 1980, coincidentemente em seguida a morte de Barthes, assume uma postura bem mais independente em suas análises, não se ligando a grupos ou qualquer corrente de pensamento. Vira um livre-pensador e o “iconoclasta do sistema”. Ao voltar dos Estados Unidos, na França escreve “América” (1986) – que deu origem ao excelente documentário adaptado, com texto e direção de João Moreira Sales e Nelson Brissac Peixoto, realizado em 1989 pela extinta TV Manchete – livro no qual afirma ser os Estados Unidos a realização da utopia da modernidade, e o restante do mundo a versão dublada com legenda no reino das imagens. Isso faz lembrar outro estudo interessante. De autoria de outro francês. Observador atento, Alex de Tocqueville, há quase dois séculos, realizou uma viagem semelhante e escreveu um dos melhores livros de ciência política, adotado em quase todas as universidades do mundo: “A Democracia na América (1835/40)”, ao analisar a sociedade americana, após a guerra da independência em 1776.

Jean Baudrillard e o seu estilo provocante e desafiador, postura profética e apocalíptica, seja em conferências e/ou entrevistas - várias aqui no Brasil - chegou ao auge com as afirmações de que a Guerra do Golfo (1991) não aconteceu. Argumentou que as transmissões televisivas do evento não eram o seu atestado de verdade, credibilidade e com a manipulação das imagens não se podia saber qual dos lados foi vitorioso. Segundo Baudrillard, essa guerra foi um “acontecimento fantoche”. De outra maneira, podemos imaginar que essa guerra foi uma “guerra pós-moderna”. Destituída de “razão”, “vazia” e “simulacral”. Pois a “pós-modernidade” é o tempo/espaço líquido - termo usado por Zygmunt Bauman - caracterizada pelo desaparecimento das grandes narrativas, das ideologias, plugada/ligada pelo excesso e a rapidez das informações, pela estrutura corporal da “carne sem ossos” na confusão entre o real e o imaginário, e a falta de “limites” instrumentais da razão da modernidade, ou seja, a razão da modernidade e a razão contemporânea não dão conta de interpretar as referências e transparências, o mundo dos acontecimentos e as várias manifestações da(s) contemporaneidade(s). Pois vivemos num mundo plural, híbrido, contaminado, fragmentado em constante rotação e (des)rotação. Em fluxo filtrado, contínuo e descontínuo, confuso e aparente. Fugaz. Nos dizeres de Omar Calabrese, habitamos uma “Idade Neobarroca”, na qual tudo é clássico e barroco, moderno e romântico ao mesmo tempo. Confluímos para um mix/mistura do humano e o tecnológico, operacional e pragmático. O reino da ilusão e da desilusão. O reino da morte da própria realidade. Detalhe: Baudrillard sempre recusou o título “pós-moderno”. Vamos dizer que desejasse ser conhecido como um “contemporâneo”. Outro detalhe, que não posso esquecer de mencionar: no final do texto tem uma lista com os principais livros do pensador, publicados por várias editoras no Brasil e Portugal.

Sociedade do Espetáculo - Jean Baudrillard é considerado por muitos o “sociólogo das maiorias silenciosas” e o “filósofo da catástrofe e extinção do real e do social”, por conseguinte um pensador que trabalhou em torno da crítica da “pós-modernidade”, envolvendo toda uma reflexão sobre a tecnologia e suas implicações. Desta maneira, Baudrillard estabelece um novo foco: a reprodução. Em contraste com o paradigma modernista de criação e produção, confirmando o estado de espanto da sociedade contemporânea e a máxima de que não mais existe uma forma crível e aceitável de explicação das coisas em uma era da racionalidade proposital.

O seu objeto de estudo se compõe da análise da sociedade contemporânea enquanto sociedade de consumo, produtora de mitos e estruturas excludentes. A base do pensamento de Jean Baudrillard é construída sob um exame complexo e objetivo dos tempos atuais, em que o ser humano se afasta cada vez mais do mundo real e natural, e se concentra no mundo das imagens da televisão e dos meios de comunicação de massa.

De formação marxista, Baudrillard faz uma reavaliação crítica de alguns postulados escritos por Karl Marx no século 19. Nesta revisão e atualização do pensamento proposto pelo pensador alemão, o autor destaca que o mundo atual é construído a partir de uma nova cultura de massa, na qual as tecnologias da reprodução pautadas nos signos e nas imagens são os elementos ativos de todo o processo. No final da década de 1960, não podemos esquecer também as influências das idéias do também pensador francês, o situacionista Guy Debord, a partir do livro “A Sociedade do Espetáculo”, publicado em 1967, ao apontar que a forma assumida pelas mercadorias, e que substituiria todas as outras no processo de dominação ideológica, seriam as imagens.

É neste novo contexto, o mundo regido pela imagem e o incessante consumo delas, que se impõe a Baudrillard uma série de reflexões, revisões e atualização no pensamento proposto por Marx. Baudrillard principia da máxima do pensador germânico de que o econômico (infra-estrutura) é que determina todos os outros elementos sociais (superestrutura). O modo de produção é a base de todo o sistema. Onde o valor de uso das mercadorias é diretamente proporcional à utilidade e satisfação das necessidades dos indivíduos. O valor de uso constitui o “suporte material” do valor de troca. O valor de troca, subordinado ao valor de uso, estaria relacionado ao mercado, ou seja, a sua “forma de mercadoria”, por extensão é por assim dizer o seu “preço” enquanto mercadoria no mercado, em relação às outras mercadorias existentes, as quais também tiveram trabalho humano socialmente necessário para consumá-las.

A reavaliação crítica de Baudrillard parte do valor de uso para a criação de outros tipos de valores. Já não bastam os valores de uso e troca para mensurar os objetos (as mercadorias) em relação à nova realidade contemporânea. Existe algo, além disso, pois o objeto também tem o valor de símbolo, logo o objeto também possui valor de signo, pleno de sentido e significado. O mundo das trocas agora não somente acontece a partir de “permutas” meramente econômicas de mercadorias e manufaturas, mas também, e quase na sua totalidade, num “novo mundo” de trocas simbólicas, dominado por signos, imagens e representações. Cabe aqui ressaltar que, a partir das reflexões da semiologia e da semiótica, as imagens estão sempre em lugar das coisas e não nas coisas: esse detalhe caracteriza e reforça o seu caráter simbólico. Neste “novo mundo”, os meios de comunicação de massa, principalmente a televisão, são os elementos que fazem esta mediação e trocas de signos e símbolos. De maneira apocalíptica, a resistência, como aponta Baudrillard, parece estar somente num “ato de recusa” em participar deste sistema do mundo contemporâneo.

Quatro Lógicas Distintas - Para avançar a reflexão é pertinente observar a distinção feita por Baudrillard em relação aos objetos, sob o enfoque de quatro lógicas distintas: 1) A lógica das operações práticas e necessidades individuais (valor de uso); 2) A lógica do mercado (valor de troca); 3) A lógica das trocas simbólicas acontecidas no dia-a-dia (valor de símbolo) e 4) A lógica da representação, diferenciação e status (valor de signo). Um outro aspecto que deve ser ressaltado é esta palavra “status”, que é derivada do latim “statutum”, e se refere a “estatuto”, “sustentação”, “ficar de pé”, ou estar numa situação diante dos olhos do mundo e dos outros; num sentido mais amplo, o “statutum” seria uma espécie de “documento” que organiza os princípios de uma sociedade. Por extensão, “status” é considerado também um tipo de posição diferenciada e favorável numa determinada sociedade; uma consideração, um renome, um prestígio, uma posição que representa a maneira como nos sentimos em relação às outras pessoas, os quais também não deixam de significar como os outros se sentem em relação a nós. Logo, o “status social”, refere-se a um tipo de prestígio publicamente atribuído a posições e trabalhos específicos dentro da sociedade.

Na sociologia de Max Weber, determinados grupos sociais, seus estilos e padrões de vidas diferenciados pressupõem também um sistema de valores, crenças e consumos diferenciados. Todavia, na contemporaneidade, o que realmente importa é o “status social” relacionado ao prestígio atribuído à posição social. É algo semelhante à mesma matriz romana para “Estado”, para definir uma espécie de posição relativa de alguém na sociedade. Eis um elemento singular no novo conjunto de ideologias que diferencia e iguala ao mesmo tempo. Diferencia, pois existem poucos que detêm muito (por exemplo, os capitalistas, que vivem uma situação financeira favorável e controla a riqueza circulante), e iguala, porque também todos querem e procuram este status, o qual pode ou não ser pré-fabricado pelas ideologias dominantes (para contagiar os vários públicos-alvos, ávidos de consumo), partindo do pressuposto psicológico que todo ser humano também é movido pelo desejo e a procura de prestígio, status e diferenciação em relação aos demais. Não podemos esquecer que, no mundo atual, muitos trabalham de maneira ávida, não somente pelo dinheiro em si, a manutenção de suas famílias, etc., mas e principalmente por uma incontrolável vontade de ter status, ser conhecido, reconhecido, famoso, visível, consumado, ser lembrado como “imagem” de sucesso. Este é o reino da imagem em sua forma plena: a sua ostentação e o seu valor de status e prestígio. Adam Smith já preconizava que o prazer proporcionado pela riqueza reside em exibi-la aos outros.

De acordo com as teorias propostas por Baudrillard, as quatro lógicas apresentadas anteriormente equivaleriam às questões da utilidade, do mercado, do presente e do status. Reitero que, no livro “For a Critique of the Political Economy of the Sign”, ele enumera estas lógicas como: primeiro, o objeto torna-se um instrumento; na segunda, um bem; na terceira, um símbolo; e na quarta, um signo. Sendo as mercadorias (objetos) tudo ao mesmo tempo, ou seja, contêm em si todas as quatro lógicas apresentadas (aqui coexistem as influências de Saussure e os estruturalistas – Jakobson, Althusser, Benveniste e até Bourdieu, etc.). Renovo que além do objeto possuir um valor de uso, a base de todos os outros valores, valor de troca e valor de símbolo, ele possui também uma capacidade de representação e significar status (valor de signo).

Em outras palavras, estes objetos são produzidos não somente para saciar uma necessidade humana (o início de tudo), muito mais: para diferenciar e significar um status, prestígio, um estilo de vida, uma ideologia, incorporando-se aí as suas funções psicológicas (o reino das escolhas do indivíduo) e culturais (o reino da sociedade). Neste estágio, as marcas, imagens e grifes valem mais que as próprias mercadorias. Transformam-se em novos signos, sendo este o novo fator de diferenciação, status e valorização que distingue todo o sistema de trocas econômicas. Em termos ideológicos, o discurso assume também outros rumos. Para Baudrillard esta nova sociedade consumista é também a sociedade do discurso da denúncia do próprio consumo.

Um Novo Código - Baudrillard aponta também que esta nova sociedade possui um novo código. Código entendido a partir do livro “Informação, Linguagem, Comunicação” de Décio Pignatari, como a própria língua, ou um novo sistema de símbolos que convencionada, representa e transmite uma mensagem entre uma fonte (emissor) e um destino (receptor). Os novos meios de comunicação, dentro desta nova sociedade, estabelecem “ligação direta” consigo mesmo, e põem em funcionamento um novo sistema de símbolos, o elemento vital que perfaz uma nova economia política, pautada na troca de valores simbólicos e distribuição, que são atualizadas de forma permanente pelos seus vários discursos, sujeitos a algumas interrogações. Entretanto, fechados, pela sua precisão, busca de perfeição e a reivindicação de um “efeito de realidade” advinda das imagens produzidas, perfazendo um cerco bem fortalecido, um bunker, alheio e “inimigo direto” de toda e qualquer crítica. Desta maneira, são os símbolos formados e criados, principalmente pelas imagens, que põem em funcionamento um novo valor de troca entre as pessoas em seus diálogos diários. Eis o princípio de uma novíssima construção social da realidade consubstanciada pela troca mediática, e não somente pelo mundo da vida real e natural.

Pois bem, vamos dizer também que esta nova sociedade possui uma nova linguagem, a partir deste novo código. E este novo código é híbrido. Podemos chamá-lo de código com informações e natureza digital-analógico. Somatória de termos e quantidades do digital: constituída por dígitos, unidades que se manifestam separadamente, como o alfabeto, sistema numérico, notas musicais, etc., como observa e destaca Pignatari, “Todo tipo de cálculo que implique em contagem é digital”, mais as mensagens do tipo analógico: os gráficos, as régua de cálculos, matrizes, etc. A amálgama e absorção das características do sistema analógico pelo digital, conduzindo a criação de computadores e sistemas híbridos mais potentes e modernos, aumentaram a velocidade da informação, permitindo uma visão “mais elaborada” em seu conjunto.

Nesta fusão dos sistemas de códigos, sabemos que o analógico está mais próximo do mundo físico que do mundo mental. O sistema analógico contém em si (de forma implícita) a idéia de modelos, de mediação, mensuração, imitação e sistemas combinatórios, aproximando-se do simulacro, algo criado e controlável, repartidos em unidades do sistema digital. Para Baudrillard este novo código está relacionado com o código binário do DNA, a tecnologia da informática, as imagens bidimensionais e digitais da televisão, a telefonia moderna (em suas várias bandas e a internet) e as inovações e gravações do áudio. Em suma, este novo código é a tecnologia da informação. Nesta fase, o código supera a era do signo lingüístico. Pois, a sua reprodução é de outra ordem, não diretamente do signo enquanto representação, e sim do novo código mediático, que já é a cópia da cópia, apagando aí todos os aspectos do original (a realidade).

Exemplos deste estágio são a realidade virtual, o holograma e as comunicações globais que utilizam as fibras óticas. Aqui, a infração ao código é a própria simulação. É o estágio além da fronteira da realidade, e, sua conseqüência é o total desaparecimento do real. A origem das coisas não parte de sua gênese (a própria realidade natural), mas sim através de combinações, fórmulas, gráficos, sinais codificados e matrizes de números, apagando o limite dos seus opostos e antônimos. Baudrillard observa que vivemos nesta era do novo código, a qual traz as suas conseqüências nefastas nas mudanças rápidas em suas formas simbólicas e materiais, amparadas cada vez num mundo dominado e manipulado pelo exagero das imagens apresentadas pelas agendas e ilhas de edições da mídia.

Transestética - Após os anos de 1980, Baudrillard assume uma concepção mais radical, a partir das conseqüências da difusão do novo código nas sociedades modernas contemporâneas. Neste momento e situação, relembramos que, o código para Baudrillard já está relacionado a todo o sistema bidimensional da computadorização e digitalização existente nos establishments dos países mais desenvolvidos, o qual permite uma perfeita reprodução do objeto ou situação acontecida. Desta maneira acontece o que ele chama de “infração do código”, viabilizando ultrapassar as barreiras do real: eis o princípio da hiper-realidade.

Baudrillard sustenta que a contínua produção das mercadorias sociais, mais precisamente produção de imagens sociais ou signos (as novas mercadorias), produz e reproduz uma economia política não mais e somente de mercadorias (manufaturas), e sim uma economia política do signo, sendo ele o elemento que operacionaliza todas as trocas sociais. Logo, todo o processo de produção, distribuição e manipulação dos signos produzidos em geral, como automóveis, imagens das pessoas, presidentes, artistas, marcas, etc., instiga a formação de um novo tipo de opinião pública. Nesta nova etapa da Indústria Cultural, toda ela operacionalizada pelo significante, não existe mais barreiras referenciais em relação ao signo.

Segundo Baudrillard, no livro Tela Total: mitos-ironias da era do virtual e da imagem, “O significado e o referente foram abolidos para o único proveito do jogo de significantes, de uma formalização generalizada na qual o código já não se refere a nenhuma ‘realidade’ subjetiva ou objetiva, mas à sua própria lógica”. Ocorrendo uma espécie de substituição, dissolução e indistinção do que seja o Verdadeiro e o Falso: a tecnologia dos meios de comunicação de massa não consegue mais reproduzir uma realidade pré-existente, ao contrário, produz o real.

A contemporaneidade é um produto das inter-relações de todas as mídias: a televisão, o vídeo, o cinema, o DVD, a música, a telefonia, o rádio, os jornais e revistas impressas, a fotografia, a internet, o plasma, etc. A produção de sentidos já não passa pelo olhar humano, a própria câmera de televisão incumbe por si só de fazer o olhar. Parecendo que todos os acontecimentos do mundo são dirigidos a elas. Cabendo então a elas (as câmeras de TVs) sua função primordial: produzir as imagens, o espetáculo por inteiro, ocasionando uma inversão de valores, uma mistura sem igual no reino da representação.

Baudrillard apresenta-nos um argumento convincente do seu efeito, em A Ilusão Vital: “Substituímos a transmutação dos valores por sua comutação, sua transfiguração recíproca por sua indiferença mútua e sua confusão. No fundo, sua transdesvalorização. A conjuntura contemporânea de reabilitação de todos os valores e de sua comutação indiferente é a pior de todas. Até mesmo a distinção do útil e do inútil não pode mais ser colocada, devido ao excesso de funcionalidade que leva à sua contaminação – é o fim do valor de uso. O verdadeiro se dilui frente ao mais verdadeiro – é o reinado da simulação. O falso é absorvido pelo demasiado falso para ser falso – é o fim da ilusão estética. E a perda do mal é ainda mais dolorosa que a do bem, a do falso mais dolorosa ainda que a do verdadeiro”. Seria uma situação transestética, de implosão, na qual a arte perde o seu poder como fenômeno próprio, seu poder de reação, suas normas e juízos de valores.

Neste contexto, a reabilitação do valor esbarra na sua própria estratégia fatal, pois ele vai além de si mesmo. Coexistindo um só caminho, como aponta Baudrillard, no mesmo livro citado anteriormente: “Só podemos opor ao destino do valor o destino da forma. Todas as formas se degradaram sucessivamente em valores, tal como as diversas formas de energia se degradam sucessivamente em calor. Degradação na estética como valor, na moral como valor, na ideologia como valor. Mas os próprios valores se degradam, terminando por se confundirem no seio de um universo fractal, aleatório e estatístico, na indiferença e na equivalência, segundo uma aceleração perpétua semelhante ao movimento browniano das moléculas. Perdemos assim o valor de uso; depois o bom e velho valor de troca volatilizado pela especulação, e estamos a caminho de perder até mesmo o valor-signo em proveito de uma sinalética indefinida, perder até mesmo toda uma lógica diferencial do signo para uma circulação logicial indiferenciada. Mesmo o signo não é mais o que era. Entropia física, entropia metafísica: todo valor é colocado sob o signo da entropia, como toda diferença sob o signo da indiferença”.

O novo código, que já opera por todo o mundo, inclusive nos países menos desenvolvidos, é o fator contaminante da forma. O seu desdobramento: “À Hipótese desencantada do valor, opõe-se então a hipótese encantada da forma. Pois se todos os valores parecem em vias de desaparição devido a um processo irresistível, as formas, pelo menos em sonho, parecem indestrutíveis. E a armadilha está em querer salvar os valores a qualquer preço, quando a perda fundamental seria a das formas”.

* José Aloise Bahia (Belo Horizonte/MG). Jornalista, pesquisador e escritor. Autor de Pavios Curtos (anomelivros, 2004). Participa da antologia O Achamento de Portugal (anomelivros, 2005). Tem dois livros no prelo. josealoise@terra.com.br

2 Comments:

Blogger Alan Santiago said...

como já deu pra perceber, o artigo foi tirado da revista eletrônica Verbo21.

P.S: quando Baudrillard morreu, o Jornal Nacional disse que morria também a 'pós-modernidade' - e é porque ele sempre recusou o título de 'pós-moderno'...

7:47 PM  
Blogger bruno reis said...

adoro as homenagens do jornal nacional. não li agora, mas acho que sei qual é esse artigo :)

mais tarde dou uma passadinha pra ler com calma. e sim, acho que era legal botar algumas fotinhas do baudrillard entre os blocos de texto... ou então fotos que tenham a ver com o mesmo, pra ficar mais atrativo :)

8:41 PM  

Post a Comment

<< Home