Thursday, June 07, 2007

Para além da roda: A sacanagem rola há muito tempo

O beijo, de Auguste Rodin(1988-89)


Para quem não sabe, o tema do mês nas rodas de leitura do Por Mais Leitura é ''Literatura e Sexo'', e ficou incubido a mim a tarefa de fazer o primeiro post abordando o assunto. Fiquei um tanto incerto sobre o que postar, por acreditar que até hoje consumi muita pouca coisa que poderia ser considerada ''erótica'', ou de um apelo sexual mais forte, mas aí entra a questão: o que está em jogo quando se usa o conceito de Sexo e Literatura? A simples descrição de um coito? Creio que não, posto que a sexualidade do ser humano não se restringe ao ato sexual em si. Pelo contrário, se relaciona aos mais diversos aspectos da sua vida, está ligado diretamente com nosso relacionamento com as outras pessoas, seja através da identidade de gênero que se constitui de acordo com nossa cultura em relação ao sexo, ou a um aspecto menos freudiano e menos tangível como amor. Mesmo que esse amor não seja aquele ensinado por 2000 anos de tradição judaico-cristã na civilização ocidental.

Trata-se portanto de um tema bastante rico e amplo, mas para fazer esse primeiro texto é preciso uma delimitação. A que faço é de fazer um pequeno recorte dentro daquilo que foi produzido na literatura em torno do sexo desde os tempos mais remotos até o início da idade moderna. E mais especificamente aquilo que aborda de maneira mais ou menos direta o ato sexual em si, o que como já disse é apenas uma das maneiras de se abordar o tema. Faço isso porque muitas vezes o apelo sexualmente explícito de textos literários parece algo circunscrito a uma certa literatura contemporânea, a alguns autores considerados malditos ou marginais. E o que é pior, esses autores muitas vezes tanto se consideram quanto são considerados ''transgressores'', ou responsáveis pela introdução de alguma novidade temática. Patavinas.

Prova cabal disso são os dois primeiros texto que foram postadso na Roda Virtual, ambos da Idade Clássica e, por incrível que pareça, não são livros marginais ou exceções dentro daquilo que se produzia na sua época. Pelo contrário, os dois textos que escolhi para abrir a série de posts são textos sagrados para suas respectivas culturas, no caso trechos de um livro da Bíblia, o Cântico dos Cânticos, que é repleto de descrições de relações amorosas, e o poema De Amaru, texto clássico da poesia Hindu. Estranho que o sexo esteja tão presente em textos sagrados? Ué, nada mais natural a presença do tema já que estes livros pretendem, de uma forma ou de outra, serem guias para seus seguidores. Não poderiam portanto deixar de abordar o sexo, de maneira nenhuma. O que ele faz, entretanto, e talvez por isso chegue a passar despercebido(a sutileza dos textos mais uma dose cavalar de pudor e hipocrisia, na verdade). Essa sutileza se dá na forma extremamente poética e onírica, com o predomínio do uso das metáforas em vez das descrições objetivas.


Essa abordagem sacralizada do sexo, aliás, é bastante interessante, posto que o tema aparentemente sempre oscila entre dois extremos: ou entre a extrema idealização ou a simples banalização, ou seja, a abordagem crua, chocante, tão praticado por alguns escritores contemporâneos. Essa estética do choque, entretanto, me parece um tanto ineficiente em um mundo que tem o sexo e os clichês pornográficos já tão saturados. Um dos autores cujo texto vem a seguir, porém, é justamente Sade, talvez aquele que foi mais explícito e mordaz na sua abordagem do sexo, sua única temática, aliás. A investida do autor, entretanto, parece válida dentro do seu contexto, já que haviam então fortes insituições que delimitavam o que era admissível ou não no comportamento sexual das pessoas. É aí que sua abordagem caústica dos frades e das moças e rapazes de família da França do século XVII não parece gratuita. Isso sem falar que o autor se salvou do abismo da pretensão exarcebada do se levar a sério demais através de um apurado senso de humor, que, ao contrário do sexo, fica sempre na entrelinha daquilo que é mostrado.

Caminho semelhante segue o menos conhecido Giovanni Boccaccio, que em plena peste negra, na Idade Média, escreveu Decameron, obra conta a história de dez personagens que, para fugir da peste, refugiaram-se em um castelo, onde nada havia a fazer senão contar histórias para passar o tempo. Estas abrangem os mais peculiares comportamentos humanos, especialmente o sexual, as práticas que fugiam da moral vigente.

Para finalizar, temos os textos de Safo provando que a abordagem do homoerotismo também não é nem de longe algo recente. A poeta viveu no século VII antes de Cristo, portanto muito antes de um Caio Fernando Abreu ou de um Jean Genet, e foi provavelmente uma das primeiras escritoras a ter sua imagem pessoal fundida/confundida com sua escrita, o que abre semelhança principalmente com o primeiro autor citado. Isso porque, apesar de ter escrito vários poemas em que seu eu-lírico faz declarações de amor(e sexo) para mulheres, não há nada que comprove historicamente que a poetisa possuia realmente comportamento ''homossexual''. Um poeta grego é que, depois de cinquenta anos de sua morte, espalhou a versão de que Safo, que fundara uma academia para jovens mulheres, possuia relações físicas com suas alunas. Se ela era ou não lésbica, pouco importa, o mais interessante de observar é que a simples hipótese foi tomada como certeza, o que foi o suficiente para ter a poetiza como ''maldita'' por bastante tempo. De qualquer forma, um belo exemplo de confusão entre vida e arte. Ou uma das primeiras autoras a atravessar essa fronteira, coisa que se tornou tão comum desde o último século. Mas isso já é outra discussão.

Como vimos, há bastante pano pra manga quando vai se discutir Sexo. E Literatura. Tentei começar de um ponto de vista inusitado, justamente pra mostrar essa riqueza de assuntos. E se você quiser falar sobre o assunto também, já sabe, é só mandar e-mail pro pormaisleitura@gmail.com. Aqui, como a roda, é um espaço livre para a discussão. Sem censura.

*Os textos que selecionei para ilustrarem esse texto, por serem muitos e alguns um pouco longos, estão postados no Roda Virtual.

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