Friday, February 09, 2007

LITERATURA E MÍDIA

por Nilto Maciel

Publicam-se todo ano no Brasil milhares de livros de poesia e prosa de ficção, quase sempre às custas dos próprios autores e em pequenas tiragens. A maioria desses livros não chega às livrarias, que hoje se dedicam a vender obras científicas (literatura médica, por exemplo), jurídicas, religiosas, filosóficas, infantis, ao lado de livros de auto-ajuda, política, amenidades, romances norte-americanos de segunda categoria e os clássicos da literatura universal e nacional.

O fim da editora tradicional talvez já tenha chegado. A literatura já estaria praticamente fora dos interesses dos editores e livreiros. A exceção a esta regra seriam os clássicos, que têm, como leitores, estudantes e escritores. A literatura nova (presente e futura) será editada por conta dos próprios autores ou pequenas editoras.

Para alguns escritores, as editoras não investem em literatura (daqui em diante empregarei o termo literatura apenas para me referir à poesia e à prosa de ficção), a mídia não dá a mínima importância ao livro, não há editoras e livrarias em número suficiente para acolher todas as obras escritas etc. E aí estaria o grande problema do escritor. No entanto, críticos e jornalistas acreditam mais na incapacidade de comunicação da maioria dos escritores com o leitor, uns por serem pobres de talento e conhecimento, outros por terem muito talento e conhecimento e se isolarem na torre de marfim da poesia para poetas, do romance para romancistas etc. Muitos escreveriam para si mesmos ou para outros escritores. Seria uma literatura para iniciados, como se a literatura fosse a linguagem de uma sociedade secreta, com seus símbolos próprios. Seria a literatura fora de mercado, não-mercantil, em contraposição à subliteratura e a uma literatura “popular”, do gosto das massas.

Edgar Morin, em Cultura de Massas no Século XX (O Espírito do Tempo), teoriza: “A corrente média triunfa e nivela, mistura e homogeneíza, levando Van Gogh e Jean Nohain. Favorece as estéticas médias, as poesias médias, os talentos médios, as inteligências médias, as bobagens médias. É que a cultura de massa é média em sua inspiração e seu objetivo, porque ela é a cultura do denominador comum entre as idades, os sexos, as classes, os povos, porque ela está ligada a seu meio natural de formação, a sociedade na qual se desenvolve sua humanidade média, de níveis de vida médios, de tipo de vida médio.”

E acrescenta: “Um exemplo de vulgarização ininterrupta esclarecerá esse propósito: O Vermelho e o Negro de Stendhal se torna um filme adaptado aos padrões comerciais; desse filme nasce O Vermelho e o Negro, folhetim em quadrinhos publicado num diário.”

Esses escritores não-mercantis não estariam voltados para o leitor, para o outro, mas para si mesmos. Segundo Emanuel Medeiros Vieira, “escrevemos para perdurar, para vencer a poeira do tempo, para despistar a morte, para regar nossos fantasmas e obsessões, para nos comunicar”. Porém como vamos os escritores nos comunicar com os leitores? Se escrevermos para nós mesmos, não haverá comunicação, e escrever será apenas catarse, psicoterapia, auto-análise.

Haveria, então, uma literatura sem mercado ou fora dele e uma literatura produzida especialmente para o mercado. Os livros produzidos para o mercado têm cotação: os mais vendidos, os best-sellers, os que interessam diretamente às editoras, aos livreiros e à mídia. Segundo Juan Liscano, em entrevista a Floriano Martins, no livro Escritura Conquistada: “Enquanto o best-seller, um produto para o mercado, constitui hoje em dia a meta da literatura, a poesia situa-se no extremo contrário, representando, portanto, o não mercantil literário, o trabalho nobre artesanal, o ofício tradicional, mesclado com as funções xamânicas de expressar o humano em transe de universalização arquetipal (a tribo de que falou Mallarmé).” Não está descartada a hipótese de uma obra literária tornar-se best-seller. Porém isto se dará quase que por acaso ou dependendo do merchandising do editor. Assim, um grande romance pode em determinado tempo tornar-se o mais vendido em algum país ou em parte do mundo. Foi o caso dos Versos Satânicos, de O Nome da Rosa e outros.

São ainda de Edgar Morin as seguintes observações: “Em certo sentido aplicam-se as palavras de Marx: “a produção cria o consumidor... A produção produz não só um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para o objeto”.

De fato, a produção cultural cria o público de massa, o público universal. Ao mesmo tempo, porém, ela redescobre o que estava subjacente: um tronco humano comum ao público de massa.
Em outro sentido, a produção cultural é determinada pelo próprio mercado. Por esse traço, igualmente, ela se diferencia fundamentalmente das outras culturas: estas utilizam também, e cada vez mais, as mass-media (impresso, filme, programas de rádio ou televisão), mas têm um caráter normativo: são impostas, pedagógica ou autoritariamente (na escola, no catecismo, na caserna) sob forma de injunções ou proibições. A cultura de massa, no universo capitalista, não é imposta pelas instituições sociais, ela depende da indústria e do comércio, ela é proposta. Ela se sujeita aos tabus (da religião, do Estado etc.), mas não os cria; ela propõe modelos, mas não ordena nada. Passa sempre pela mediação do produto vendável e por isso mesmo toma emprestadas certas características do produto vendável como a de se dobrar à lei do mercado, da oferta e da procura. Sua lei fundamental é a do mercado.”

Em outra página o filósofo francês acrescenta: “No entanto, se nos colocarmos do ponto de vista dos próprios mecanismos do consumo e do ponto de vista do tempo, podemos considerar que ao longo dos anos, os temas que desabrocham ou desfalecem, evoluem ou se estabilizam no cinema, na imprensa, no rádio ou na televisão, traduzem uma certa dialética da relação produção-consumo.

Não se pode colocar a alternativa simplista: é a imprensa (ou o cinema, o rádio) que faz o público, ou é o público que faz a imprensa?

A cultura de massa é imposta do exterior ao público (e lhe fabrica pseudo-necessidades, pseudo-interesses) ou reflete as necessidades do público? É evidente que o verdadeiro problema é o da dialética entre o sistema de produção cultural e as necessidades culturais dos consumidores. Essa dialética é muito complexa, pois, por um lado, o que chamamos de público é uma resultante econômica abstrata da lei da oferta e da procura (é o “público médio ideal” do qual falei) e, por outro lado, os constrangimentos do Estado (censura) e as regras do sistema industrial capitalista pesam sobre o caráter mesmo desse diálogo.

A cultura de massa é, portanto, o produto de uma dialética produção-consumo, no centro de uma dialética global que é a da sociedade em sua totalidade.”

Na verdade, o grande problema do livro não está na distribuição, ao contrário do que afirmam algumas pessoas. Porque mesmo que as livrarias * que são poucas no Brasil * aceitassem os livros de todos os escritores, ou de grande parte deles * mesmo assim não estaria garantida a comercialização dos livros editados. Não há leitor para literatura, especialmente poesia e prosa de ficção. A circulação das obras literárias é e deverá ser sempre restrita a outros escritores, estudiosos, pesquisadores, críticos, estudantes etc. Livros com distribuição garantida a todas livrarias e bancas de revistas são aqueles livros produzidos com os ingredientes da violência, cenas de sexo, drogas etc. Os best-sellers norte-americanos são o melhor exemplo desse tipo de “literatura”.

As livrarias não aceitam livros editados por pequenas editoras, geralmente criadas por um escritor para editar os próprios livros. E quem são os escritores que têm leitores? Os melhores? E quem são os melhores? Geralmente os melhores são eleitos pelos professores de literatura e pelos críticos. Os primeiros, talvez por falta de tempo, já chegam às cátedras das Faculdades de Letras com os mesmos nomes de sempre, os escritores que leram e estudaram: Fernando Pessoa, Machado de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Carlos Drummond, Manuel Bandeira e poucos outros. Mesmo grandes poetas e prosadores são esquecidos, como Jorge de Lima. Dirão: daqui a 50 anos outros nomes serão incluídos nessa lista dos melhores. Será a sua vez * dizem, como consolo ao escritor de hoje. O grande público, porém, não conhece esses bons escritores. Isto é, um pequeno número de pessoas, ilustres leitores e estudiosos, seleciona os melhores.

Moacyr Scliar resumiu a questão escritor-leitor, valendo-se de palavras de outros grandes escritores: “Quem não espera um milhão de leitores não deveria escrever, dizia Goethe, mas desde então as expectativas têm sido mais modestas. Stendhal: “Escrevo para apenas cem leitores, e desses seres infelizes, amáveis, encantadores, conheço apenas um ou dois”. Arthur Koestler levou mais adiante a fórmula dos “cem leitores”: uma centena, sim, mas que possam ser trocados por dez ao cabo de uma década e por um único no fim de um século.” (Revista Literatura n.º 3, dezembro, 1992).

O público de jornal, de revista semanal e de televisão não tem interesse por literatura. Mesmo a literatura mais banal, mais popularesca, mesmo essa não tem grande público. Daí a mídia não ter interesse nela. Ora, a política, nacional e internacional (agora mais do nunca, com a globalização da informação), os esportes, o crime, a música pop têm público, grande público. Daí as muitas páginas nos jornais. E os melhores horários na televisão.

Eloésio Paulo, em seu recente Teatro às Escuras - Uma Introdução ao Romance de Uilcon Pereira, afirma: “A propósito das relações entre o texto literário e o padrão de comunicação estética estabelecido pelos veículos de comunicação de massa, o poeta João Cabral de Melo Neto já apontava em 1954 para a necessidade de um comércio maior entre as formas poéticas e novos meios de difusão. Cabral destacava principalmente as virtualidades do rádio como difusor da poesia; apresentava, como uma direção inevitável para o poeta moderno, reformular sua posição enquanto agente de um processo de comunicação, ao mesmo tempo mantendo a alta elaboração estética na base de seus objetivos e procurando abrir-se à possibilidade de atingir o grande público. Via-se o poeta, portanto, diante de um impasse representado pela concorrência dos mass media, que por outro lado encerrava, dialeticamente, a própria saída ou solução, já que o tornar a poesia capaz de “entrar em comunicação com os homens nas condições que a vida moderna oferece” era, para Cabral, a “contraparte orgânica” da luta pela expressão poética desobstruída do tom oratório característico do lirismo tradicional.”

E diz mais: “Se a ficção do período (anos 50 e 60) não ignorava a cultura de massas, é certo que encerrou a problemática em outros termos, distanciando-se do mundo racionalmente administrado da sociedade em industrialização para mergulhar nos impasses da consciência individual e nas indagações metafísicas, coincidindo os escritores mais importantes numa pesquisa estética em nada dirigidas para a massificação da literatura.”

Há alguns anos os jornalistas eram, antes de tudo, escritores, como Machado de Assis e outros. Os donos dos jornais ou os editores-chefes precisavam desses escritores. Sem eles, não teriam como editar seus periódicos. Daí também os suplementos literários, que certamente nunca ressurgirão. Não havia ainda os cursos de comunicação. Mesmo assim, ainda hoje temos os artigos assinados, sim. Porém seus autores geralmente são políticos profissionais, sociólogos ou economistas. Que eventualmente podem ser escritores.

Edgar Morin cita um trecho de Robert Musil, em O Homem sem Qualidades, quando o personagem Arnheim pergunta: “Você não notou que nossos jornalistas ficam sempre melhores e nossos poetas sempre piores?” E tira sua conclusão: “Efetivamente, os padrões se enchem de talento, mas sufocam o gênio. Um copy desk do Paris-Match escreve melhor que Henri Bordeaux, mas não saberia ser André Breton.”

(grifos meus)

6 Comments:

Blogger Giovani Iemini said...

Bacana o espaço.
Se puder, coloque meu blog entre os links indicados.
[]s

4:50 AM  
Blogger bruno reis said...

ótimo texto, muitas e muitas reflexões interessante e necessárias. confesso que ainda não consegui formar uma opnião sobre todas as questões, até porque o problema não é de soluções fáceis.

várias e várias variáveis no meio disso tudo, começando pela imensa pobreza do país, tanto material quanto intelectual. o lima barreto disse que o brasil não tinha povo, e sim público, mas eu acho que nem isso. se por um lado há o enclausuramento na torre de marfim, também não sei se seria interessante um nivelamento por baixo.

que há atualmente, principalmente na poesia, o que a heloísa buarque, não propriamente numa crítica, chamou de ''arquitetura de citação'', isso sem dúvidas. não defendo que se deva voltar às puras emoções e todo esse blábláblá romântico fora de tempo, mas também não acredito que seja papel de qualquer poeta demonstrar conhecer toda a história da literatura brasileira e utilizá-la de forma a fazer algum tipo de síntese e apontar caminhos.

entendo a sensação de deslocamento e falta de referências, mas talvez devesse ser justamente essa sensação que poderia ser melhor expressa e tematizada. claro que isso não é uma tentativa de impor um cânone, ou uma maneira que se deve fazer, mas uma opinião estritamente pessoal daquilo que acho importante.

há toda uma história e isso deve ser respeitado, conhecido e estudado, mas não sei se esse é exatamente o mérito da poesia. ou pelo menos talvez não o único.

acho que alguns mitos precisam ser quebrados, e quebrados através da produção também, de que o que é popular é ruim ou vice-e-versa, é preciso um tipo de convivência mais harmônica entre a arte e a cultura de massa. como, eu não sei, mas é preciso pensar, creio eu.

ah, e ótima iniciativa de postagem, gostei bastante. até me animou a fazer um post em resposta.

11:09 AM  
Blogger bruno reis said...

ah, e mão, como esse é um blog institucional do por mais leitura, resolvemos colocar apenas links de sites que falem sobre literatura. os blogs devem entrar depois, no site do pmltextos ;)

11:11 AM  
Blogger Alan Santiago said...

Ontem eu estava assistindo ao programa do Sérgio Britto, na TVE, e lá estava o Affonso Romano de Santana que lança agora um livro de contos em que vê o problema da arte na contemporaneidade.

Ele citou um conto muito interessante, a parábola do Rei nu: é a história de um Rei que manda virem dois alfaiates - larápios, embora ninguém saiba disso - para fazerem uma nova roupa para si. A roupa, que obviamente não existe, começa a ser 'costurada' e, devido à excessiva demora, o Rei manda seus subordinados irem checar o andamento da roupa. Chegando lá, todos os que são mandados, com medo de parecerem pouco inteligentes, fingem ter visto e voltam dizendo para o Rei as maravilhas que vêm do salão de costura.

Então, no dia que está pronta, a roupa é mostrada ao Rei e, também com medo de parecer desinformado, desinteressante e desinteligente, acha lindo e decide desfilar para o povo, mostrando-se soberano. Ninguém ousa dizer que o Rei, obviamente nu, está, de fato, nu e acham igualmente linda a roupa, mas um garoto cai na gargalhada e grita em alto e bom som: O Rei está nu! e então, as pessoas começam a observar a nudez do Rei.

Acho que essa parábola ilustra um pouco do rumo que certa literatura e a arte, em geral, está tomando ultimamente. Vejo que, na tentativa frustrada de originalidade (isso é forte nas artes plásticas), há uma distensão e uma exacerbação no conteúdo dessa produção, o que acaba resvalando no próprio ato de consumir a arte já que o público se torna refém de uma lógica que não te dá a oportunidade de discordar. Já fui a exposições no MAC e eu disse: Que feio! E me deram um cotovelada: É arte!

Na literatura, as pessoas sempre procuram uma interpretação miraculosa a poemas simples ou tentam pôr nos textos alguma intrincada chave, que revelará algum mistério incrível, genial e bombástico. Antes de preocupação em não nivelar por baixo, acho que o principal é fazer a boa literatura ser possível. E isso acontece, embora (como diz o texto do Nilto) só por sorte. Acho que é aí que temos que nos deter, tentar fazer com que isso não seja apenas um jogo de azar. Como você disse, Bruno, pensar...

12:40 PM  
Blogger bruno reis said...

uhmmm, já conhecia a história, de quando era criança, acho é até um livro da ruth rocha(ou estou confundindo com o reizinho mandão). talvez seja mesmo uma matéria interessante, uma certa variação bem humorada da torre de marfim do século retrasado.

mas sim, sobre as artes plásticas eu nem penso que seja algo assim tão forte, pelo menos não mais do que em outras artes. o que me incomoda mais às vezes são os quadrinhos de rascunho que os museus daqui as vezes colocam na parede, não sei se é falta do que colocar ou se é falta de vergonha. porque é muito feio ficar colocando rabiscos de famosos aclamados em vez de dar espaço pra pessoas que estão fazendo coisas novas. sem falar em coisas bem pouco interessantes de pessoas ou que usam o marketing como se fosse a mais fina ferramenta artística, e não a obra em si. sem falar da restrição a meia dúzia de nomes que já estão muito bem fincados na rodinha cultural da cidade, muitas vezes sem oferecer nada de muito interessante, pelo menos não nos últimos anos. é mais isso do que qualquer coisa estranha que não pareça arte, isso eu acho até legal, porque é uma continuação da pesquisa de formas e materiais que começou com as vanguardas, e que não deve nem pode parar, mesmo que o tempo histórico daquela primeira tenha acabado. agora se pode passear do convencional ao mirabolante, sem problemas. acho interessante que muitas vezes a sensação hoje em dia passa do objeto visual para despertar outros sentidos, ou mesmo convidas o espectador à construção de um sentido. a literatura acho que poderia aprender um pouco mais com essa experiência.

5:57 PM  
Blogger Diogo said...

Bem, o que me parece agravar também esse problema, embora alguns discordem, é a hermetização que tem nesta cidade (por exemplo); e esses "núcleos" acabam criando essa segregação, e as vezes até de maneira involuntária. Ex: "temos aqui a exposição de trabalhos de jovens da comunidade carente X"; acho que até inevitável, isso.

Sem contar que qualquer meio de arte nesta cidade é um funil; e sem espaço para essa brecha abrir, por vários motivos que não creio que seja apenas mera concorrência...

Diogo

6:03 PM  

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