Alguns dedinhos de prosa(aliás, poesia) com Antônio Cícero
Navegando pelo site da cantora Adriana Calcanhotto, me deparei com uma espécie de blog espaçadamente atualizado chamado ''Pelos Ares''. Nele, poemas, notícias, fotos, trechos de entrevistas aparentemente postados pela própria Adriana. E entre tudo isso, acabei encontrando um trecho, sem nenhuma explicação, de uma entrevista do poeta Antônio Cícero, parceiro de Adriana e de diversas outras personalidades da música, muitas com sua irmã, Marina Lima. Na entrevista, a qual não consegui identificar para quem ou que veículo, versa sobre algumas questões à respeito de poesia contemporânea, vanguardas e tradição, desfazendo alguns mitos e visões meio que solidificadas à respeito do fazer poético. Vale a pena conferir.
Q: - Mas em que medida a vanguarda foi importante para a sua poesia? Questiono isto, porque se, por um lado, os seus poemas não fazem cedências ao experimentalismo, por outro, não pode dizer-se que ficou imune às influências das correntes mais vanguardistas.
Antonio Cicero - Não há poesia contemporânea - ou melhor, não há boa poesia contemporânea - que se pretenda imune às influências vanguardistas. Não se pode hoje fazer poesia como se as vanguardas não tivessem existido. Mas o verdadeiro sentido das vanguardas foi o de abrir portas, não o de fechá-las. Os vanguardistas falavam de "destruição", de "morte", de "fim": da "morte do soneto", do "fim do verso", da "destruição da métrica" etc. Tratava-se de pura retórica, porém tanto eles quanto os seus inimigos acabaram por acreditar nela. Estavam todos enganados. No final das contas, como hoje sabemos claramente, não ocorreu nenhuma dessas mortes ou destruições. Independentemente das ambições e das ilusões dos seus protagonistas, o que as vanguardas efetivamente mostraram - e não o fizeram com seus manifestos, mas com seus poemas - é que a poesia é compatível com uma infinidade de formas. É verdade que o corolário disso é que as formas tradicionais eram meramente tradicionais e não essenciais à poesia, isto é, que elas têm origem na convenção e não na natureza. Ao revelar esse fato, as vanguardas relativizaram essas formas; mas relativizar uma coisa é diferente de destrui-la. Do século XII ao século XVII, construíram-se e se consolidaram diversas formas de poesia escrita adequadas às línguas modernas. No século XIX, essas formas se apresentavam como "naturais" e infringi-las parecia anti-natural.
As vanguardas simultaneamente abriram caminho para as infinitas possibilidades que haviam sido excluídas e mostraram que as formas "naturais" eram na verdade formas que haviam sido fetichizadas. Bastou essa revelação para se desmontar o fetiche. Uma vez feito isso, as vanguardas haviam cumprido a sua função histórica.Mas esse é o resultado final da atividade das vanguardas: é o que ficou depois que elas terminaram o seu trabalho, isto é, depois que percorreram o caminho finito que nos trouxe da pré-modernidade à modernidade plena. É claro, porém, que esse caminho não foi uma linha reta. A história nunca é assim. Antes de desfetichizar as formas tradicionais, as vanguardas as mantiveram fetichizadas, porém inverteram o valor desse fetiche. Se tradicionalmente as formas convencionais haviam sido as únicas admissíveis na poesia, em certo momento as vanguardas passaram a tomá-las como as únicas inadmissíveis na poesia. Entretanto, isso foi apenas um momento da história das vanguardas. Ao cabo dela, não havia sobrado fetiche algum, nem positivo nem negativo.É importante ressaltar que o resultado realmente importante dessa história não foi nenhum progresso artístico, isto é, nenhum progresso da própria poesia, mas um progresso cognitivo.
O resultado objetivo de todo o afã da vanguarda foi a aquisição de um conhecimento de caráter negativo sobre a essência da poesia. Descobriu-se que nenhuma forma é essencial à poesia. Isso significa que por princípio não se pode receitar como deve ser um poema. Pela mesma razão, não há critérios prontos para serem aplicados a cada poema que surja. É nesse ponto que nos encontramos hoje. Trata-se, evidentemente, de uma situação muito diferente tanto daquela (pré-vanguardista) em que se supunha conhecer as formas essenciais à poesia quanto daquela (vanguardista) em que ainda se buscava determinar as formas essências à poesia. O grande erro que alguns vanguardistas cometeram foi confundir os progressos cognitivos que obtiveram com um progresso artístico.
Outro erro não menos grave, porém, é cometido pelos inimigos da vanguarda e da modernidade que, ao ridicularizarem a confusão que acabo de apontar, entre conhecimento e arte, negam à vanguarda qualquer sentido e se recusam a reconhecer o que ela realizou do ponto de vista cognitivo. Mas não é possível voltar atrás e é preciso dizer a verdade: as vanguardas acabaram; mas acabaram, não porque não tenham dado certo, mas porque cumpriram a missão de legar ao mundo a liberdade da qual, hoje, a poesia da nossa geração se beneficia. Quanto a mim pessoalmente, alguns dos poetas mais importantes na minha formação foram vanguardistas ou ex-vanguardistas, como Carlos Drummond de Andrade.
Q: - Então você crê que não haja mais lugar para a poesia experimental?
Antonio Cicero - Creio o oposto: o fato de que as vanguardas acabaram não significa que não continue a existir - ou que não tenha o direito de continuar a existir ou que não possa ser boa - a poesia experimental, isto é, a poesia que faz experiências com novas linguagens, formas, técnicas, materiais etc. O experimentalismo continua a existir, embora seja apenas uma das possibilidades da poesia. Ele não é mais "vanguarda", pois não está mais a abrir caminho para a nossa compreensão da poesia, mais apenas explorando caminhos formais alternativos. Enquanto poeta algum pode ignorar o feito cognitivo da vanguarda histórica, é apenas por uma questão de gosto que alguém toma ou deixa de tomar conhecimento da arte experimental de hoje.
Q: - Você diria que ainda há lugar para a busca do novo?
Antonio Cicero - Não. Acho que a arte não tem nada a ver com nenhuma "busca do novo". Essa expressão mesma é fruto de um equívoco. Quando digo que o artista experimental faz experiências com novas linguagens etc., não quero dizer que ele esteja abstratamente "à busca do novo". Ele está concretamente experimentando e brincando com determinadas linguagens, determinados materiais etc. A partir dessa experimentação pode surgir uma obra. O que importa é que ela seja boa e isso não depende do seu grau de "novidade", que é totalmente acidental. Além disso, a expressão "busca do novo" supõe que "o novo" esteja por aí, para ser achado. Supõe uma exterioridade do "novo" em relação ao artista e à arte. Segundo essa imagem, o artista é aquele que "capta o novo" que os outros não percebem. Por isso Ezra Pound, que cometeu o equívoco de exortar os poetas a "make it new", também os chamava de "antenas da raça". É a concepção do artista como aquele que, antes dos outros, consegue captar e retransmitir o tal "novo". Mas captar e retransmitir o novo não é a função legítima dos poetas, mas sim dos jornalistas e dos publicitários. Também acho superada a hierarquização poundiana dos artistas em inventores, mestres e diluidores. O poeta que acredite nisso vive na ansiedade de tentar achar o "novo" antes que um outro o faça; mas "o novo" já é velho, quando é achado.
Q: - Entretanto, "o novo" não era importante apenas para Pound, mas para a vanguarda, de modo geral.
Antonio Cicero - O "novo" foi uma categoria importante para a vanguarda porque o feito da vanguarda enquanto vanguarda foi, como eu disse, um feito cognitivo. Sua importância estava em revelar algo sobre a natureza da poesia. Ora revelar algo que todo o mundo já soubesse não teria sido revelar coisa alguma. Uma revelação é tanto maior quanto mais nova for, quanto mais contrária for ao que é sabido. Daí o culto à novidade. Contudo, a novidade não é, de modo algum, uma propriedade estética; do contrário, um poema bom ficaria ruim à medida que passasse a sua novidade.
Q: - Mas não se pode dizer que um poema bom é inovador, no sentido de que mostre novos caminhos para a poesia?
Antonio Cicero - Se fosse assim que aconteceria, quando passasse a novidade desses novos caminhos? Por que é que um poema continua sendo bom, mesmo depois que mil poemas posteriores já trilharam os caminhos que ele um dia apontou? Será porque sabemos que ele foi o primeiro? Mas pensar desse modo seria degradar a apreciação estética a uma apreciação histórica. Se fosse assim, só se leria Dante, por exemplo, por interesse histórico, por respeito ao fato de que ele tenha sido inovador no seu tempo, mais ou menos como se pode ler Copérnico hoje. Ora, a verdade é que o meu prazer em ler Dante não depende em nada de saber que ele inovou em alguma coisa. Mesmo um leitor que ignore que Dante tenha sido inovador é capaz de obter um prazer estético vivo, atual, e não histórico, da leitura da Divina Commedia. E é essa propriedade que distingue a grande literatura. Na verdade, Isócrates já tinha, na Grécia antiga, resolvido a questão da novidade, quando afirmava que, nas artes da palavra, são dignos de admiração não os primeiros a fazer alguma coisa, mas os melhores, e que se deve honrar não os que tentam fazer o que ninguém antes fez mas os que são capazes de fazer o que ninguém mais consegue. Penso que o importante não é fazer o novo, mas fazer aquilo que não envelhece.
*Se alguém souber de onde é a entrevista, por favor me avise para que sejam colocados os devidos créditos. Por enquanto, fica com a Adriana.
0 Comments:
Post a Comment
<< Home