Sunday, February 25, 2007

Entrevista com Fernando Baez sobre a destruição de livros e objetos culturais no Iraque

Invasão Iraquiana foi o maior desastre cultural desde 1258
por Humberto Marquez

Livros destruídos na biblioteca Bayt al-Hikma

Um milhão de livros, 10 milhões de documentos e 14.000 artefatos arqueológicos foram perdidos na invasão, liderada pelos EUA, e subsequente ocupação do Iraque – o maior desastre cultural desde quando os descendentes de Gengis Khan destruíram Bagdá em 1258, disse à Inter Press Service o escritor venezuelano Fernando Baez.

Soldados norte-americanos e poloneses ainda estão roubando tesouros e vendendo-os nas fronteiras com a Jordânia e o Kuwait, onde comerciantes de arte pagam até 57.000 dólares por uma tábua suméria, disse Baez, entrevistado em uma rápida visita a Caracas.

O especialista em destruição de bibliotecas ajudou a documentar a devastação de objetos culturais e religiosos no Iraque, onde emergiram os antigos reinos mesopotâmicos da Suméria, Acádia e Babilônia, dando-lhe a reputação de berço da civilização.

Seu inventário da destruição e suas denúncias de violações das tropas da Coalizão à Convenção de Haia de 1954 quanto à proteção do patrimônio cultural em tempos de guerra lhe renderam a inimizade de Washington.

Baez disse que lhe foi negado o visto para entrar nos Estados Unidos para participar de conferências.

Além disso, ele foi proibido de retornar ao Iraque “para empreender mais investigações” , segundo o próprio. “Mas já é tarde, porque nós já temos documentos, gravações em vídeo e fotos que em tempo servirão como evidencia das atrocidades cometidas”, disse Baez, autor de A Destruição Cultural do Iraque e da Historia Universal da Destruição dos Livros, que foram publicados em espanhol.

Interior da biblitoeca al-Awqaf queimado


Inter Press Service: O que você acusa de estarem fazendo os EUA?

Fernando Baez: Em primeiro lugar, de violar a Convenção de Haia, que estatui que a propriedade cultural deve ser protegida no caso de conflito armado.

Isso é uma ofensa punível criminalmente, o que explica Washington não ter assinado a convenção, ou o protocolo de 1999 anexado a ela. E talvez isso seja uma razão porque a administração de George W. Bush está procurando imunidade para seus soldados.

Mas não é só os EUA; o resto das forças de Coalizão também é culpado.

IPS: Mas de acordo com os relatórios, foram civis iraquianos e não soldados norte-americanos que saquearam bibliotecas e museus.

FB: Mas o exército norte-americano foi criminalmente negligente, falhando em proteger bibliotecas, museus e sítios arqueológicos, a despeito de claros alertas da UNESCO ( United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization), da ONU, do Instituto Oriental da Universidade de Chicago e do ex-chefe do Comitê de Aconselhamento em Propriedade Cultural, Martin Sullivan.

Os iraquianos que decidiram saquear interpretaram a negligência como um sinal vede para agir sem limites.

IPS: Então o pecado cometido pelos EUA foi omitir-se?

FB: Não apenas isso. Também houve destruição direta e pilhagem. Em Nasiriya, em maio de 2004, um ano depois do fim formal das hostilidades, durante um confronto com militantes do clérigo xiita Moqtada el-Sadr, 40000 manuscritos religiosos foram destruídos por fogo pelas forças de Coalizão.

E quando soldados descobriram que a cidade suméria de Ur (no sudeste do Iraque) foi o lugar de nascimento do profeta Abraão, levaram tijolos ancestrais como souvenirs.

IPS: Você também acusa soldados de outros países, além das tropas norte-americanas.

FB: Sim. No final de maio de 2004, carabineiros italianos foram pegos tentando contrabandear artefatos culturais saqueados na fronteira com o Kuwait. E o Museu Britânico avisou que forças polonesas detruíram parte das ruínas antigas da Babilônia, no sul de Bagdá.

IPS: Podemos supor que esses eventos fazem parte de fases do conflito que já foram deixadas para trás?

FB: Não. Mais recentemente descobriu-se que tropas polonesas dirigiram com veículos pesados perto do Palácio Nebuchadnezzar, que data de antes do século sexto antes de Cristo, e cobriram grandes áreas do lugar com asfalto, causando danos irreparáveis. Houve também tentativas de arrancar tijolos do Portal de Ishtar.

A isso se soma o colapso dos muros antigos causado pela passagem contínua de caminhões norte-americanos e helicópteros, e muros pixados com frases como “I was here” ou “I love Mary”.

IPS: Podemos esperar que a situação melhore com o tempo?

FB: Outra acusação que pode ser feita contra os EUA é que foi o causador de um país menos seguro como um todo, gerando as condições para uma destruição cultural, que será ainda pior nos próximos anos, devido à situação de insegurança legal.

Nos dias da pilhagem de Bagdá, o Secretário de Defesa dos EUA, Donald Rumsfeld, chegou ao ponto de dizer que pilhagem “não é algo que alguém permite ou não permite. É algo que acontece”.

Hoje o Iraque é como um clube de golf dos terroristas do mundo, e seus tesouros culturais não estarão a salvo no futuro.

IPS: Que impacto isso tem causado nos EUA?

FB: Uma das reações foi o reingresso à UNESCO, da qual os EUA se desviaram durante a era de Ronald Reagan (1981-1989) sob o pretexto de que a agência servia como “uma frente comunista”.

Especialistas dos Departamentos de Estado e Defesa dos EUA estão tentando mitigar os danos. A polícia militar norte-americana ajudou policiais iraquianos na busca da “Senhora de Warka”, apelidada de “Mona Lisa da Mesopotâmia”, uma escultura de mármore de 5.200 anos que é uma das mais antigas representações conhecidas da face humana na história da arte.

IPS: Quão significantes são as perdas?

FB: A Senhora de Warka deve valer 100 ou 150 milhões de dólares. Uma tábua cuneiforme suméria ou estatueta assíria podem custar 57.000 dólares na fronteira.

Alguns iraquianos estão comprando livros em mercados de livros usados em Bagdá para devolvê-los às bibliotecas.

Mas o dano é incalculável. Na Biblioteca Nacional de Bagdá, por volta de um milhão de livros foram queimados, incluindo versões antigas das Mil e Uma Noites, tratados matemáticos de Omar Khayyam e escritos dos filósofos Avicena e Averróis.

IPS: Centenas de relíquias também foram perdidas do Museu Nacional de Arqueologia.

FB: Os relatórios iniciais falaram de 170.000 objetos, mas, em realidade, outros 25 artefatos vultosos, assim como 14.000 menos importantes desapareceram. O oferecimento de anistia aos saqueadores levou a um retorno de por volta de 3500, de acordo com o coronel norte-americano que liderou as investigações, Matthew Bogdanos.

Mas além do Museu e Biblioteca nacionais, a Biblioteca al-Awqaf, que abrigava mais de 5.000 manuscritos islâmicos, as bibliotecas universitárias e a biblioteca de Bayt al-Hikma também sofreram perdas. No mínimo 10 milhões de documentos foram perdidos no Iraque ao todo.

[Baez disse que sua pesquisa sobre a destruição de bibliotecas e arquivos foi primeiramente motivada pelas memórias dolorosas de sua infância de quando uma inundação destruiu a biblioteca de sua cidade, San Felix, no sudeste da Venezuela. Ele sente afeição pela biblioteca municipal porque enquanto seus pais trabalhavam, ele era deixado com conhecidos que trabalhavam lá e passava seus dias lendo. Sua pesquisa culminou no livro História Universal da Destruição dos Livros, que documenta a catastrófica perda de livros durante querras, como a Biblioteca de Alexandria, que foi queimada em 48 a.C., ou a queima de milhões de livros pelos nazistas.]

IPS: Você acredita que as forças militares tem sido os piores inimigos dos livros?

FB: Não, na verdade não. Eu acredito que os intelectuais são os piores inimigos. Intelectuais tem queimado livros em nome da Bíblia ou do Corão. Vladimir Nabokov (1899-1977) queimou o Dom Quixote em frente de seus alunos. Destruidores como Adolph Hitler ou Slobodan Milosevic eram bibliófilos. O próprio Saddam Hussein, um arqueólogo e filólogo, publicou três romances. Joseph Goebbels, o gênio da propaganda nazista, era um filólogo.

E muitos outros que lideraram os EUA na guerra do Iraque são acadêmicos. É um paradoxo: os inventores do livro eletrônico foram à Mesopotâmia, onde os livros, a História e a civilização nasceram, para destruí-los.

Papel incinerado na Biblioteca Nacional do Iraque

(Inter Press Service)

SITE DA ENTREVISTA: http://www.fernandobaez.galeon.com/cvitae551799.html


Nota: postagem atendendo ao pedido de Ary Salgueiro

5 Comments:

Blogger Ary Salgueiro said...

Gostei muto de ter lido essa entrevista e de ter lido, infelizmente só na Introdução, o História Universal da Destruição dos Livros. Mostra um angulo marginal do conflito: o da destruição do patrimônio literário do país, numa acepção de literatura que vai desde à ficção à literatura científica. Se fala nesse caso em Memoricídio, o que não ocorre só nessas guerras, mas também aos nossos olhos, com o descaso dos governos e a nossa negligência em agir na defesa das bibliotecas.

6:29 PM  
Blogger henrique said...

This comment has been removed by the author.

7:38 PM  
Blogger henrique said...

acho que a idéia desses caras é, além de destruir a humanidade, destruir também qualquer vestígio que esta ouse legar

8:26 AM  
Blogger João Miguel said...

Gostei muito de ler a entrevista. Muito mesmo, apesar de me espantar e sofrer um pouco a cada resposta do Baez. Enquanto lia o começo, lembrei que havia um livro sobre destruição de livros - bom ver que era do próprio Fernando Baez.

Valeu, Ary! .o/ E concordo com o que você disse no final.

8:41 AM  
Blogger Geraldo Moreira said...

Gosto imensamente do que Báez escreve, já li os dois livros dele publicados em português e estou aguardando o outro sobre a queima de livros no Iraque que está para chegar.
Mas além de Báez eu gosto também do livro e das entrevistas de Lucien X. Polastron. Ver site http://www.liberation.fr/societe/2014/02/10/filippetti-denonce-des-pressions-de-groupes-extremistes-contre-des-bibliotheques_979222

9:18 PM  

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